À Beira do Sonho 01


À Beira do Sonho 01
Parte Um

À minha mãe,
que me ensinou a força do silêncio
e a fé discreta que iluminou cada passo meu.

✍️ Uma palavra a quem lê
A história que se abre nestas páginas nasce na Síria dos anos setenta, quando o país oscilava entre a promessa de transformações sociais profundas e o peso imutável de um presente sufocante.
É o percurso de um jovem vindo do campo, dividido entre a tradição que o chama para trás e o desejo que o impele para diante. Nos seus dias cruzam-se a modesta loja de tecidos em Damasco, as ruelas estreitas da aldeia natal, os cheiros de algodão e poeira — lugares que não são meros cenários, mas espelhos de inquietações escondidas.
Entre cidade e campo, entre saber e carência, entre liberdade e obediência, desenha-se a tessitura íntima e política desta narrativa.
À Beira do Sonho não ergue bandeiras, mas deixa vibrar, nas entrelinhas, o rumor de uma sociedade que educa os seus jovens à sombra da dúvida e da esperança. É uma história de procura e, sobretudo, de resistência: a esperança que se recusa a morrer, mesmo quando tudo conspira para apagá-la.
Convido-vos a entrar neste universo com o coração aberto e o olhar atento. Talvez descubram aqui o reflexo de uma memória vossa — longínqua e próxima ao mesmo tempo.
–– Numan Albarbari 📖

Antes do começo
Numan regressava a casa depois de mais de uma semana mergulhado em exames, passados na escola particular em pleno coração de Damasco. Trazia nos olhos o peso de um cansaço persistente, como se aqueles dias lhe tivessem roubado uma paz que só percebia em falta quando voltava ao lar.
O regresso parecia anunciar-se como uma espera silenciosa, uma antecâmara de algo decisivo, como se pudesse ouvir já, nas entrelinhas do caminho, o eco do resultado que ainda não lhe fora revelado.
Na fronteira entre a capital e o campo, a luz hesitava antes de nascer por inteiro, e o espírito detinha-se num balanço frágil antes de se entregar ao destino. Não era apenas a geografia a separar esses dois mundos, mas um abismo sensível e invisível que se podia sentir em cada batida do coração.
A capital representara para ele o campo de estudo e de prova, o centro da luta íntima contra si mesmo. O campo, porém, era o regresso ao afeto, à memória, à essência simples da vida.
Mas naquela tarde o coração carregava algo de estranho: uma sensação indefinida, mistura de incerteza perturbadora e de uma esperança suave, que se infiltrava como fio de luz na penumbra da dúvida.
O pôr do sol na sua cidade natal, Douma, espalhava-se sobre a tarde como quem prepara o caminho para o regresso. As luzes tímidas do beco estreito cintilavam discretamente, iluminando a vereda até ao bairro da Praça, antes de se dissolverem devagar.
Apesar do desgaste que lhe devorava o pensamento antes mesmo do corpo, havia dentro dele uma ânsia difícil de explicar.
E mal transpôs a soleira da casa, deslizou-lhe aos ouvidos a voz da mãe, como uma canção aguardada há muito tempo:
— Numan! Finalmente chegaste, luz dos meus olhos… Diz-me, foi o exame que te deixou assim tão cansado?
Um sorriso cansado desenhou-se no rosto dele, mas os olhos brilharam com uma alegria secreta, quase escondida. Respondeu num murmúrio frágil:
— Sim, mãe… foi duro, mas… não sei… sinto que algo mudou dentro de mim. O sucesso está perto, quase o posso tocar!
O rosto dela iluminou-se como um candeeiro de azeite antigo aceso na escuridão da alma. Aproximou-se e envolveu-o naquele abraço feito de ternura que só uma mãe pode oferecer.
— És o nosso herói, Numan… o nosso orgulho. Sofremos ao ver-te crescer nos nossos sonhos, e esperamos até este momento. Acredito em ti, sei que chegarás a um lugar digno do teu esforço e da tua nobreza.
As palavras dela palpitavam de uma fé quase absoluta no bem, como se a mãe fosse a própria imagem do sonho, o eixo da esperança, o centro invisível da sua vida afetiva.
Naquele instante, quando ela o chamou de herói, o pôr do sol deixou de ser apenas um cenário longínquo e tornou-se uma revelação: a vida tinha sentido.
As palavras deslizaram até ao coração dele, sacudindo-o por dentro. Sempre acreditara nele, nas suas capacidades, nos seus sonhos. Depositara todo o seu futuro naquele filho, apesar das durezas e das contradições da vida.
Foi então que o pai surgiu à porta do quarto, atraído pelas vozes, com a roupa caseira de sempre, o traje habitual de um dia de descanso.
Os traços do pai revelavam o orgulho sereno de quem vê no filho a continuação da própria esperança. Aproximou-se devagar e disse, numa voz baixa carregada de afeto:
— Tenho tanto orgulho em ti, Nouman… Mas sei que não vais parar aqui, pois não?
Numan ergueu os olhos para ele, depois para as mãos da mãe, ainda pousadas sobre os seus ombros, e sentiu que estava mesmo diante da decisão mais importante da sua vida: realizar o seu sonho — e o sonho da família.
Um silêncio espesso atravessou o instante. Então, com firmeza inesperada, respondeu:
— Enfim decidi, meu pai, minha mãe… Vou prosseguir os estudos depois dos resultados e preparar-me para entrar na Faculdade de Engenharia. Já não tenho dúvidas. Darei tudo de mim, e um dia serei o melhor nesse caminho.
Os rostos iluminaram-se de alegria. Não era apenas uma escolha académica, era a proclamação de uma autonomia nova, o nascimento de um sonho amadurecido, a revelação íntima do “escolher”.
O pai e a mãe trocaram um olhar silencioso. Depois, o pai disse:
— Então, Numan, estaremos contigo em cada passo. Este é o teu sonho, e nós estamos orgulhosos — de ti e de tudo aquilo em que te tornarás.
Numan sorriu. Havia nesse sorriso um tremor de alívio, como quem regressa da beira de um naufrágio. O seu projeto deixava de ser apenas seu: tornava-se também pertença dos corações dos pais. Nos olhos de ambos brilhava uma emoção secreta, como se aquela decisão fosse recebida como notícia de salvação.
Um sonho começa num indivíduo, mas logo se expande e envolve a todos. Talvez esse passo fosse o início de desafios sucessivos, de encontros transformadores, ou até de quedas que iriam refazer a imagem que tinha de si mesmo. Mas uma certeza ficava: aquela noite marcava a primeira passagem real à beira do sonho. E seria sempre a referência a que voltaria para dizer: “Foi ali que comecei.”
— Obrigado a vocês os dois… Só preciso das vossas orações e do vosso incentivo.
E nesse instante, envolto pelo calor da família, Numan sentiu-se pronto para mudar a vida — não apenas por si, mas para fazer brilhar uma luz no céu de quem amava. Assim como sempre escolhera: caminhar em direção ao melhor.
Introdução
A loja não permanecia na memória de Numan apenas como um espaço de trabalho. Era mais do que isso: um templo íntimo, um pequeno santuário onde as lembranças se acumulavam e onde cada canto respirava história, esforço e persistência.
Os tecidos, com a sua rudeza e suavidade, com as suas cores e fios entrelaçados, tornavam-se a imagem viva da dualidade da sua própria vida: entre o sonho e a realidade, entre o desejo e a necessidade.
Naquele velho comércio, situado no coração de Damasco, entre caixas de madeira e de papelão repletas de fazendas — umas presas em feixes de serapilheira áspera, outras pendendo suavemente das prateleiras — começava a história de um jovem à beira da vida adulta.
A loja no mercado de Al-Hamidiya não era para ele apenas um trabalho de verão. Transformara-se numa estação de passagem, onde se abastecia de esperança para continuar a caminhar em direção a um futuro que ousava sonhar.
Numan estava prestes a completar vinte e um anos. Nascido no seio de uma aldeia pobre e religiosa, era o primogénito entre os irmãos, o primeiro neto dos avós, e o único que prosseguira nos estudos numa casa onde aprender não era um caminho fácil, mas uma travessia por entre apertos e durezas.
O pai, barbeiro, lutava no seu pequeno ofício com ganhos escassos que mal chegavam para alimentar onze bocas. A mãe, curvada horas a fio sobre uma antiga máquina de bordar aghbani, passava os dias entre a claridade da manhã e as sombras do entardecer, desenhando motivos damascenos sobre o linho, na tentativa de suprir as necessidades que o salário do marido não cobria.
Numan compreendeu cedo que o caminho da educação não se pavimentava apenas com boas intenções. Era um trilho íngreme, exigente em sacrifícios, pesado em custos. Estudar implicava despesas para além das forças de uma família de trabalhadores humildes.
Por isso começou a trabalhar cedo, logo após a escola primária, para poder sustentar-se e garantir os materiais de estudo. Desde aquele verão encontrou-se mergulhado num ofício que não o refletia, que não correspondia aos seus sonhos, mas que se tornara a única saída.
Não tinha o privilégio de escolher. Trabalhar não era uma opção, era uma necessidade que o pressionava, condição indispensável para que pudesse seguir os estudos preparatórios e, mais tarde, o liceu.
Mas aquele verão era diferente. Numan decidira trabalhar para o velho Haj Abu Mahmoud.
Homem de idade avançada, severo e de poucas palavras, Abu Mahmoud era conhecido pela rigidez com que cumpria sua rotina diária. Cultuava a ordem como quem guarda um tesouro. Nada confiava ao improviso: nem números, nem contas, nem vendas. Tudo tinha de ser registrado com caneta e papel, ainda que pudesse resolver de memória num piscar de olhos.
Todas as manhãs, às oito em ponto, abria a loja. Examinava a limpeza do espaço, verificava o alinhamento dos tecidos, observava cada detalhe. Em seguida, redigia e ditava em voz baixa ao seu empregado o plano de trabalho do dia.
Há um mês Numan era esse empregado — o único da loja. Começara logo após concluir os exames do último ano do liceu. E, em pouco tempo, mostrara tanta dedicação e disciplina que não passou despercebido por quem o rodeava.
A sua única motivação era simples e imensa: ter sucesso, alcançar a universidade e mudar o rumo do seu destino. Talvez assim pudesse oferecer à família um futuro melhor.
Quando saíram os resultados, estava entre os aprovados.
Não fora dos melhores, mas vencera o exame.
E ainda que a vitória não tivesse o brilho sonhado, era suficiente para marcar o primeiro passo na estrada que desejava percorrer.
Naquela manhã, entrou na loja com a folha de notas na mão. Os olhos traziam uma mistura de nervosismo e alegria. No coração, uma pergunta insistente:
“Será isto suficiente? É esta vitória verdadeira? Foram estas notas uma recompensa justa por todo o esforço até aqui?”
E, no fundo da alma, uma voz suave sussurrava:
“És o único da família que chegou até aqui. Cada ponto nesta folha é já uma conquista.”
Abu Mahmoud leu o boletim em silêncio. Depois, um leve sorriso abriu-lhe os lábios:
— Parabéns pela tua aprovação.
Foi até à velha caixa de ferro, retirou três notas de cem libras e colocou-as no bolso do rapaz.
— Mereces um dia de folga… — disse, mas logo acrescentou:
— Vai primeiro à loja do senhor Abu Ali, na Praça Marja. Compra dois tabuleiros das melhores sobremesas. Diz que vais da minha parte, para que escolha algo à altura do teu sucesso. Um fica para a celebração aqui, entre nós e os vizinhos. O outro, levas para tua casa. Que festejes com a tua família como mereces.
Aqueles trezentos libras equivaliam a um salário inteiro de um mês.
Enquanto caminhava em direção à Praça Marja, uma dúvida atravessou-lhe o pensamento:
“Devo gastar o esforço de um mês inteiro numa festa de um só dia?”
Mas logo apagou essa voz de hesitação. O dinheiro não era seu; fora o patrão quem decidira. E celebrar a vitória já não era luxo, mas um direito conquistado.
Voltando, trouxe três caixas de doces damascenos e as colocou sobre a mesa. Abu Mahmoud sorriu e disse:
— Antes de abrirmos… isto é para ti.
Retirou da velha caixa de ferro mais três notas de cem libras e entregou-as ao rapaz, ainda sorrindo.
— Mas, mestre… isto é demasiado! — exclamou Nouman, surpreso.
— Não, professor Numan. Não é demais para quem alcançou o sucesso. Alegraste o meu coração… — respondeu o velho. E, pela primeira vez, deixou transparecer algo da sua intimidade — …como desejei, em minha juventude, alegrar o coração dos meus pais com uma conquista assim. Tentei tantas vezes… mas nunca consegui.
Aquelas palavras abriram uma fenda na sua rigidez habitual. Por um instante, o silêncio calculado que sempre o envolvia cedeu lugar a uma frágil humanidade. Numan percebeu que, de certo modo, o passado do homem se refletia na sua própria história — como se Abu Mahmoud se revisse numa versão de si que nunca chegara a ser.
Assim, a decisão de celebrar não era apenas uma ocasião festiva. Tornava-se uma cena simbólica: uma loja antiga, no coração de um mercado tradicional, transformava-se numa praça de reconhecimento pelo crescimento de um jovem. Não pelo lucro de um negócio, mas pelo florescer de um sonho.
— Vamos chamar alguns vizinhos, e festejar como mereces! — disse Abu Mahmoud, levantando-se.
E naquela tarde de verão em Damasco, a velha loja de tecidos celebraria não uma transação bem-sucedida, mas um sonho nascente. Numan, o rapaz do campo, dava mais um passo em direção a um futuro que sempre esperara.
Nesse instante, entrou um homem de terno preto, camisa cinzenta e gravata em tons de cinza-escuro. Trazia consigo uma jovem de pele alva, quase da idade de Nouman. Vestia uma saia curta preta e uma blusa cinzenta de mangas curtas, segurando nas mãos um pedaço de tecido.
O homem saudou em voz calma:
— As-salamu alaykum.
Abu Mahmoud respondeu com a sua voz firme e conhecida:
— E que a paz, a misericórdia e as bênçãos de Deus estejam convosco.
Em seguida, voltou para a sua mesa, enquanto Numan se preparava para sair e cumprir o que havia combinado com o seu professor.
O velho chamou-o, com uma voz clara e autoritária:
— Senhor Numan , por favor… receba os clientes e ajude-os.
Numan parou à entrada da loja, respirou fundo e avançou com passos curtos até se posicionar atrás do balcão. Um sorriso calmo surgiu no seu rosto enquanto se dirigia ao cliente:
— Seja bem-vindo! Como posso ajudá-lo, senhor?
Capítulo Um:
O rapaz dirigia suas palavras ao homem, apoiando as mãos sobre o longo balcão que os separava. Não olhava para a jovem, nem para o pedaço de tecido que ela estendia com confiança, os olhos brilhando com um toque de desafio:
— Procuramos desde cedo um tecido que corresponda a este — disse ela, examinando-o. — Cor, textura, padrão… tudo.
Mas Numan , firme e imóvel, continuou sua conversa com o homem, sem estender a mão para o tecido:
— Desculpe, senhor, vendemos tecidos apenas por atacado ou meia carga, não vendemos no varejo.
A jovem não se conteve, andando com os olhos entre pilhas e prateleiras, e retrucou:
— Mas alguém nos indicou vocês! Garantiram que são especialistas nesse tipo de tecido e que aqui encontraríamos exatamente o que procuramos!
Numan repetiu sua resposta com a mesma calma, dirigindo-se apenas ao homem:
— Desculpe, como disse, senhor, não vendemos no varejo.
A irritação da jovem cresceu, e ela falou com tom de desafio:
— Nem sequer podemos olhar? Talvez encontremos o que precisamos aqui! Ou será que seu nível está acima de considerar os outros?
Numan permaneceu impassível, mantendo sua compostura, e novamente se dirigiu ao homem:
— Senhor, por favor…
A jovem interrompeu-o com impaciência, a voz mais alta:
— Está ali! Aquele tecido na prateleira! Sim! Exatamente! Pai, é isso que procuro!
Mesmo com o clamor da jovem, Numan continuou sua fala ao homem com uma calma quase surpreendente:
— Desculpe, senhor, mas, infelizmente, só vendemos por atacado.
A impaciência da jovem aumentou. Apontando para o tecido, exclamou:
— Baixe esse pano para mim! Vamos! Mexa-se! Por que está parado assim? Você é cego? Não me ouviu?
De longe, o velho Abu Mahmoud observava a cena em silêncio, com a habitual sabedoria serena.
Numan , mantendo a delicadeza, disse:
— Senhor, posso anotar para você o nome de um comerciante varejista próximo do mercado de Harika. Ele é o único da região que compra este tipo de tecido. Lá vocês encontrarão exatamente o que procuram.
O homem assentiu, concordando:
— Sim, por favor.

Pegou o papel da mão de Numan e agradeceu com delicadeza. Em seguida, segurou a mão da filha, pronto para partir, mas ela a retirou com firmeza e disse:
— Primeiro precisamos ter certeza!
Então aproximou-se de Numan e, com o rosto próximo do dele, gritou:
— EU é que falo! Não meu pai! Você é cego? Surdo? Ou não entende mesmo?!
Apesar do insulto, Numan manteve o rosto calmo, sorrindo com polidez. Seu silêncio, mais que qualquer palavra, parecia ecoar com firmeza.
Isso inflamou ainda mais a raiva da jovem, que começou a disparar impropérios em um dialeto que ele mal conseguia compreender, palavras rápidas e desconexas que caíam sobre ele como tapas invisíveis.
Mesmo assim, ele não perdeu a compostura, permanecendo como um muro sob a chuva, impassível.
— Posso ajudá-los com mais alguma coisa, senhorita? — disse ele, tranquilamente.
A jovem, ao ouvir isso, perdeu totalmente a paciência. Virou-se para o velho Abu Mahmoud e gritou, com a voz cortante:
— Não há um empregado mais inteligente do que este idiota? Damascus está sem trabalhadores decentes para você usar este pateta?!
Então, Abu Mahmoud avançou alguns passos, com a calma habitual, e falou com uma gentileza que parecia conter a própria raiva:
— Sejam bem-vindos! Imagino que tenham chegado a Damasco após uma longa viagem e talvez estejam cansados.
— Espero que aceitem nosso convite para um chá, para descansarmos um pouco e conversarmos com tranquilidade.
A jovem respondeu com veemência:
— Obrigada pela recepção! Mas está claro, só pelo comportamento do seu empregado, como vocês tratam os visitantes em seu país!
O velho manteve seu tom suave:
— Não se precipite, minha cara! Este jovem diante de você é educado e cortês. Apenas não tem experiência com senhoritas, que não entram em nossa loja — como Numan já lhe explicou. Nosso atendimento é voltado apenas para comerciantes.
Ela gritou:
— Não me interessa! Estou pagando do meu próprio dinheiro! E, como dono da loja, deveria se certificar de vender sua mercadoria. E ele, como empregado, deveria atender o cliente!
O velho Abu Mahmoud respondeu com gentileza:
— Tens razão em parte, minha cara, mas só vejo neste jovem boas maneiras. Apesar do que lhe disseste, ele não cometeu erro algum. Peço desculpa pelo mal-entendido.
Em seguida, apontou para o prato de doces:
— Aliás, hoje é um dia especial em nossa loja. O professor Numan acabou de passar nos exames do ensino médio, na vertente científica, e trouxe estes doces para celebrarmos. Íamos convidar os vizinhos para a festa, mas já que chegaram antes deles, sejam muito bem-vindos.
A jovem silenciou por um momento e, em tom mais baixo, respondeu:
— Não… não, obrigada. Só queremos comprar o tecido e iremos embora imediatamente.
— Como quiserem — disse o velho, com calma, retornando ao seu escritório.
Ela se aproximou, mudando o tom de voz:
— Não vais pedir ao teu empregado que nos venda um pedaço deste tecido? Ou será que ele não te ouve… ou estará à espera de uma ordem que nunca chega?
Numan respondeu, mantendo a polidez:
— Pedimos desculpa. Não temos registro de vendas por unidade, e os restos não são vendidos aqui.
Ela murmurou, olhando para Numan com certo desprezo:
— Certamente ninguém comprará nada aqui… enquanto o atendimento for assim…
Depois se voltou para Abu Mahmoud:
— Muito bem, então comprarei o tecido inteiro. Traga-o para mim.
O velho pediu a Numan que atendesse o pedido. Numan desceu o tecido cuidadosamente, colocando-o sobre a mesa diante do professor, e voltou ao seu lugar. Seus olhos estavam vermelhos, como se escondessem lágrimas que se recusavam a cair.
A jovem examinou o tecido, enrolou um pedaço em torno do corpo e depois olhou para si mesma em um pequeno espelho que tirou da bolsa. Voltou-se para o pai, com olhos que escondiam uma longa conversa que só ele podia ouvir, e sussurrou:
— É este, papai… exatamente como eu queria.
O homem tirou a carteira e entregou ao velho Abu Mahmoud um maço de dinheiro. Mas o valor era insuficiente; o preço era alto demais. Pediu para adiar o pagamento, dizendo que iria ao carro buscar o restante.
Antes que ele pudesse se afastar, a jovem se adiantou e ordenou a Numan , com voz firme:
— Leve o vestido até o carro, nós pagaremos lá.
Numan congelou por um instante. Como poderia fazer isso depois de tudo que havia sido dito? Mas conteve tudo que ardia em seu peito.
O homem então falou com gentileza:
— Por favor, poderia nos ajudar a levar o vestido? Não atrapalharemos você, o carro está bem perto.
Numan olhou para o professor como pedindo autorização para falar e disse, com calma:
— Podem alugar um dos carregadores de lá.
Abu Mahmoud balançou a cabeça e sorriu:
— Não há necessidade de carregadores, Numan . É só um vestido, leve e fácil de carregar… apenas coloque-o no carro, receba o restante do valor e volte rapidamente!
O homem acrescentou:
— Se faz favor, senhor Numan .
Numan abaixou a cabeça, repetindo silenciosamente para si mesmo: “Só coloque o vestido no carro… receba o restante… e volte rápido.” Hesitou por um momento, depois carregou o vestido, pesado não pelo tecido, mas pelo silêncio e constrangimento, e seguiu atrás do homem com passos lentos. A jovem, por sua vez, já ia à frente com passos firmes, como se dissesse com os olhos: “Siga-me…” — caminhava como se arrastasse algo que considerava seu por direito.
Capítulo Dois:
O relógio marcava duas horas da tarde, e Numan ainda não havia retornado à loja. Era o horário da sesta; as lojas de atacado fechavam, como de costume naquele antigo mercado de Damasco.
Três longas horas de pausa para o almoço se arrastaram pesadas para Abu Mahmoud. Aos poucos, as lojas começaram a retomar seu movimento, lentamente, como despertando de um torpor.
Ele desceu do mezanino e encontrou a porta ainda fechada, como se a ausência tivesse esticado o tempo de forma interminável. O cenário o fez hesitar por um instante, antes de abrir a porta com a mão e espiar para fora, olhando à direita e à esquerda, como se buscasse um fantasma que acabara de partir.
Entrou devagar, percorrendo cantos e a sala de serviços, chamando baixinho, sem obter resposta. Sentou-se atrás da sua mesa, folheando pensamentos, fitando o silêncio — apenas os ponteiros do relógio marcando os minutos com uma lentidão quase cruel. Atendeu alguns clientes com relutância, adiando seus pedidos até que seu assistente voltasse, como se não quisesse realizar nada em sua ausência.
O tempo parecia roer-lhe a paciência, até que Numan finalmente entrou. Seus passos eram pesados, o rosto pálido, como se sobre ele tivesse passado uma eternidade comprimida em horas, levando embora algo irrecuperável.
Não era só o cansaço físico que pesava; um sentimento profundo de humilhação golpeava seu coração e sua mente ao mesmo tempo. O corpo exibia fadiga, mas dentro dele havia uma ferida invisível, ainda sangrando e queimando de intensidade.
Quando o relógio marcou sete e meia da noite, Numan colocou o dinheiro sobre a mesa, diante do professor, em silêncio.
Abu Mahmoud ergueu os olhos, uma mistura de espanto e preocupação estampada no rosto, e disse com voz suave:
— Onde esteve, meu filho?… Por que se atrasou tanto?… O que aconteceu contigo?…
Mas Numan não respondeu. Dirigiu-se calmamente à pequena geladeira, pegou uma garrafa de água e bebeu de uma só vez, sentando-se por um instante sem pronunciar palavra. Depois levantou-se e começou a se preparar para fechar a loja, como se quisesse abaixar a cortina sobre aquele dia o mais rápido possível.
Foi um dia longo… excepcional em tudo que continha. Quando o relógio se aproximava das oito da noite, Abu Mahmoud se despediu, voltando para casa, deixando Numan sozinho para finalizar os últimos preparativos de fechamento da loja.
Numan fechou a loja com cuidado, trancou a porta principal e verificou as fechaduras laterais pelo lado de fora. Virou-se uma última vez para o interior, antes de seguir seu caminho, arrastando os pés cansados até o ponto de ônibus.
Subiu no ônibus e sentou-se perto da janela, olhando em silêncio para a escuridão através do vidro arranhado, como se buscasse nas sombras imagens que apenas ele podia ver. Enquanto o motorista se preparava para partir, Abu Mahmoud surgiu de repente, como se tivesse vindo procurar alguém.
Numan estava ali, mas não parecia perceber a presença do professor ou de qualquer outro passageiro. Continuava fixo na escuridão, imóvel, mergulhado em pensamentos que ninguém podia alcançar.
O homem sentou-se ao lado dele, sem dizer uma palavra. Numan permanecia absorto, os olhos presos a algo invisível, algo sem forma ou nome. Quando o cobrador se aproximou para recolher a passagem, Abu Mahmoud retirou calmamente o dinheiro e apenas indicou:
— Dois passageiros.
A viagem seguiu quase uma hora inteira sob o domínio absoluto do silêncio. Quando o ônibus se aproximou do ponto em que Abu Mahmoud deveria descer, ele chamou o motorista em voz firme:
— Próximo ponto, por favor.
Numan se virou surpreso, incapaz de esconder o espanto. Só naquele instante percebeu que seu professor estivera sentado ao seu lado todo o tempo. O choque aumentou seu desconforto; seu olhar tornou-se uma pergunta silenciosa sem resposta.
Abu Mahmoud inclinou-se discretamente e disse enquanto se preparava para descer:
— Paguei sua passagem…
E, com uma gentileza calorosa, acrescentou:
— Não se esqueça de levar os dois pratos de doces para casa…
Quando começou a descer, parou de repente, olhou para Numan com um sorriso tranquilo e disse:
— E cuide bem deles! Que não se esqueça… como quase esqueceu na loja há pouco!
Acenou com a mão em despedida, deixando para trás uma impressão calorosa que reverberava no coração do jovem, como se fosse um pedido silencioso de desculpas inesquecível.
Capítulo Três:

No horário habitual, já tarde da noite, Numan voltou para casa envolto em sombras de cansaço e fios de saudade. Sua mãe o recebeu à porta com um sorriso caloroso, aquele sorriso que há tanto tempo esperava florescer em seu rosto. Ela não estava ali para repreendê-lo pelo atraso, mas para lhe oferecer a alegria do coração em uma noite de conquistas.
O rosto cansado dela brilhava, como se o esforço se transformasse em ornamento de amor. Passara o dia inteiro preparando uma mesa à altura do filho dedicado, aquele que o esforço não o quebrava, mas o lapidava.
Seus irmãos mais novos rodeavam-na, olhos atentos seguindo cada passo, inalando o aroma da comida que escapava pelas portas e janelas, como se fosse o prenúncio de um dia de festa. Eles não esperavam apenas pelo jantar, mas pelo encontro, pelo triunfo de Numan .
Numan entrou com passos pesados, murmurando um cumprimento baixo, tingido de cansaço e desalento… Mas ao cruzar seu olhar com o rosto iluminado da mãe e os rostos radiantes dos irmãos, sentiu um calor que corria pelo peito, afastando a fadiga e a amargura. Um sorriso tímido surgiu em seus lábios, e ele estendeu as mãos, oferecendo os pratos de doces como se oferecesse seu próprio coração, cheio de gratidão.
Quando as crianças viram os doces, explodiram em gritos de alegria, correndo em direção a ele e abandonando a mesa que tanto esperavam. A mãe tentou organizar a cena, levantando um dos pratos:
— Este prato é suficiente para todos… talvez para dois dias ou mais! — disse com ternura.
Mas os pequenos já estavam mergulhados num mundo de açúcar e encanto.
Numan pediu à mãe que lhes desse liberdade naquela noite, e então sentou-se ao lado dela, jantando em silêncio, os olhos passeando pelos rostos de seus irmãos, iluminando-se de satisfação.
— Minha felicidade não se descreve, meu filho — disse ela, cortando o pão e entregando-lhe cada pedaço — Você me encheu de orgulho.
Numan sorriu, indicando os irmãos:
— Aqui, com eles, encontro a verdadeira felicidade… veja como expressam sua alegria!
Ela riu, balançando a cabeça:
— Esperaram horas pelo jantar, cheirando a comida com seus narizes, observando-me com os olhos, e depois deixaram tudo de lado pelo doce do seu sucesso.
Interveio sua irmã mais velha, cheia de orgulho:
— Mas eu te ajudei, mãe, não se esqueça!
E o irmão mais novo completou, animado:
— E eu fui à mercearia comprar o azeite!
Então, um a um, os irmãos começaram a relatar suas contribuições, cada qual levantando a bandeira da participação à sua maneira.
Numan riu, espontâneo:
— Vocês são os melhores irmãos do mundo… obrigado a todos, e obrigado a você, mãe, e ao pai. Sem o apoio, a paciência e a calma de vocês enquanto eu estudava, eu não teria chegado até aqui. Mas… atenção! Vocês também precisam cuidar dos estudos… e deixem um pouco dos doces para o pai e para a mãe!
A irmã mais nova protestou, abraçando o prato com força:
— Não diga que vai deixar um pouco para os filhos dos vizinhos também! Eles não nos dão nada!
A mãe ergueu a mão com um gesto suave, porém firme:
— Não, minha filha. Não nos preocupamos com o que está nas mãos dos outros… nós estamos satisfeitos, graças a Deus.
Risos brotaram de todos os cantos, enchendo o pequeno cômodo de alegria. Então a mãe começou a recolher os pratos, com uma voz carregada de ternura e amor:
— Agora, todos lavem as mãos e o rosto, escovem os dentes e vão para a cama. E amanhã… queremos ouvir sobre os sonhos de vocês.
A irmãzinha riu e brincou:
— Não, mãe! Quero dormir com o gosto do doce na boca… para sonhar com ele!
A mãe sorriu e brincou:
— E quer deixar o monstro da cárie passear pela sua boca? Lave os dentes, ou não ouviremos seu sonho amanhã por causa do cheiro!
Quando o silêncio se espalhou pela casa e todos já dormiam, o pai voltou do trabalho, visivelmente cansado. A mãe sentou-se ao seu lado, contou-lhe tudo o que havia acontecido e ofereceu-lhe um pequeno prato de doces, colocado sobre um antigo prato de cobre que guardava desde seu enxoval de casamento.
O pai perguntou, intrigado:
— De onde Numan tirou o dinheiro para esses doces tão finos?
A mãe respondeu com calma:
— Não perguntei… ele trabalha, hoje está feliz e bem-sucedido, e não queria estragar sua alegria.
O pai a observou atentamente e disse:
— Vi duas caixinhas em lojas conhecidas… quero saber como ele conseguiu.
A mãe respondeu suavemente, tranquilizando-o:
— Perguntarei a ele de manhã. Deixe que a felicidade dele permaneça pura esta noite.
O pai assentiu com a cabeça, sorrindo:
— Só não se esqueça de mandar um pouco para meus pais, meus irmãos, seus filhos… e para quem mais você quiser compartilhar a alegria do sucesso.
A mãe sussurrou, satisfeita:
— Eu faria, mas a quantidade não é suficiente para todos!
Depois de terminar os afazeres da cozinha, deitou-se ao lado dele. Um silêncio suave, quase como uma oração, os envolveu.
Antes do amanhecer, Numan despertou, fez suas abluições, estendeu seu tapete de oração em um canto distante dos irmãos e realizou duas rakats. Levantou a cabeça em direção ao pai adormecido e murmurou baixinho:
— Não se preocupe, pai… sou como sempre, com a ajuda de Deus.
Voltou para a cama, recitou as duas suratas protetoras e fechou os olhos, sentindo a paz que só a fé e a família podem trazer.
Ao primeiro canto do amanhecer, Numan levantou-se novamente, fez suas abluições e rezou. Depois, despertou seus irmãos com delicadeza e ajudou-os a se preparar para o dia. Preparou a mesa em silêncio: pão, azeitonas, tomilho, iogurte e chá.
Então, tirou do bolso três cédulas e estendeu-as à mãe, dizendo:
— Meu professor me deu cem liras para comprar os doces e ainda me deu estas três notas… disse que eram um presente pelo meu sucesso. É todo o dinheiro, mãe.
A mãe as pegou e beijou sua cabeça:
— São suas, meu filho. Esta é a sua alegria… e a nossa felicidade com você já nos basta.
Em seguida, voltou-se para os outros irmãos e disse, com ternura misturada à firmeza:
— E vocês, prometem que serão como ele?
Todos gritaram juntos:
— Sim, mãe!
Mas Numan permanecia distante, perdido em pensamentos. A mãe perguntou:
— Em que você está pensando, meu filho?
Ele respondeu com voz tranquila:
— Estou pensando em deixar o trabalho com o senhor Abu Mahmoud para me preparar para entregar meus documentos à universidade em Damasco… ou, pelo menos, para algum instituto médio.
A mãe respondeu com voz serena:
— Vou conversar com seu pai, e acho que ele não vai se opor. Você sabe o que é melhor para seu futuro, Numan .
Nesse instante, o pai entrou na cozinha e disse:
— Bom dia!
Todos responderam em coro:
— Bom dia, papai!
Ele sentou-se ao lado de Numan e lhe deu um tapinha no ombro:
— Parabéns pelo seu sucesso, meu filho!
Numan beijou a mão do pai e murmurou:
— Que Deus os abençoe, pai e mãe.
Em seguida, pediu licença para sair. O pai acompanhou-o até a porta e disse, calmamente:
— Não tema a minha severidade… apenas me preocupo com você. Ouvi sua conversa com sua mãe… o que vem pela frente é o seu futuro, e você sabe disso… confio em você.
Depois, passou a mão em seu ombro e acrescentou:
— Que a paz o acompanhe.
Numan saiu cedo, dirigindo-se para o trabalho, enquanto o pai retornava para a cama, retomando o sono até as oito horas. Nesse momento, os irmãos mais novos começaram a se preparar para ir ao kuttab, aquelas pequenas casas do bairro onde uma senhora idosa, conhecida como “Al-Khaja”, os ensinava a recitar com paciência e carinho trechos do Amma e do Tabarak.
Quando o alvoroço da manhã se acalmava e a mãe terminava suas tarefas domésticas, ela se sentava diante da máquina de aghbani, bordando com linhas de seda colorida sobre pedaços de tecido. Era assim que tecia o sustento da família, um trabalho que vinha realizando há anos com dedicação e paciência.
Os bordados de aghbani eram sua principal fonte de renda. Ela recebia os tecidos e as linhas dos empregadores, e devolvia-os transformados em peças ornamentadas, feitas com suas próprias mãos. Às vezes, um de seus filhos a acompanhava para carregar os tecidos — por muitos anos, Numan havia cumprido essa tarefa; agora, cabia ao irmão mais novo assumir esse pequeno ofício.
Capítulo Quatro:
O sol mal começava a iluminar as estreitas ruas de Damasco quando Numan entrou na loja de tecidos, como de costume, cedo demais, antecipando até mesmo os primeiros sussurros da luz. Abriu as fechaduras com mãos hábeis e começou a limpar o chão, reorganizando os tecidos com o cuidado de quem procura um tesouro escondido.
Antes da chegada de seu mestre, Numan ferveu a água e preparou uma xícara de chá de ervas florais, como fazia todas as manhãs.
O senhor Abu Mahmoud, dono da loja, entrou, cumprimentando-o com a voz firme de sempre:
— Bom dia!
Numan respondeu, em tom discreto e respeitoso:
— Bom dia, meu mestre.
Mas naquela manhã, o senhor surpreendeu-o com um leve sorriso e uma voz mais suave:
— Hoje quero café em vez de chá. Vamos tomá-lo juntos. Sabe preparar café?
— Claro, mestre — respondeu Numan , dirigindo-se à pequena sala —, mas… perdoe-me, não quero tomar café.
Uma voz vindo de trás da porta, carregada de uma leveza sorridente, respondeu:
— Tomará, e não recusará meu pedido, como sempre. Não é assim?
Numan sorriu, meio cansado:
— Está bem… como deseja, mestre.
Murmurou para si mesmo:
“E que gosto tem o café sem um cigarro? Eles são gêmeos inseparáveis…”
O senhor perguntou sobre a quantidade de açúcar, e Numan respondeu:
— Do jeito que o senhor gosta.
Poucos minutos depois, Numan retornou carregando uma pequena bandeja com duas xícaras de café e um copo de água fria. Colocou-a sobre a pequena mesa de gavetas e entregou a primeira xícara ao mestre, com um sorriso forçado:
— Aqui está, mestre, sirva-se.
O senhor lançou-lhe um olhar avaliador e, intrigado, disse:
— Vejo você diferente do habitual esta manhã. Posso saber o motivo?
Numan respirou fundo, tentando disfarçar o nervosismo:
— Nada… só tenho a certeza de que o senhor não é dos que acompanham o café.
O senhor Abu Mahmoud deu uma curta risada:
— É verdade… mas hoje quis um café contigo, e também ouvir os detalhes do que aconteceu ontem à noite. Fala-me sobre o tempo em que estiveste ausente da loja, desde que saíste carregando o tecido, até regressares pouco antes do encerramento.
Numan olhou-o por alguns instantes e disse:
— Mestre… mas poderia pedir-lhe três coisas?
O homem arqueou as sobrancelhas:
— Só desta vez… não vou ficar zangado. Diz lá, o que queres.
Numan pigarreou:
— Primeiro, perdoe-me, não quero falar sobre o que aconteceu ontem. Segundo, desejo devolver o dinheiro que me deu; basta-me o que me ofereceu para as guloseimas.
Colocou, calmamente, três notas à frente do mestre.
O senhor olhou para ele por um instante e perguntou:
— E a terceira?
— Peço que procure um novo funcionário para a loja. Ficarei ao seu serviço até que encontre alguém para me substituir — respondeu Numan , a voz misturando determinação e tristeza.
O mestre permaneceu em silêncio por um momento, como se lesse nas entrelinhas, e depois falou, mais suavemente:
— E mais alguma coisa?
Nesse instante, um homem entrou na loja. Tinha um ar respeitável e aproximou-se devagar, com educação:
— Boa tarde… peço desculpa, posso juntar-me a vocês?
O senhor Abu Mahmoud respondeu, sorrindo:
— Boa tarde, seja bem-vindo. Estávamos prestes a conversar sobre o que aconteceu ontem… sente-se, por favor.
Enquanto isso, Numan levou os copos e a bandeja para a sala ao lado, sentando-se e continuando o seu café em silêncio pesado. Um sentimento de rejeição queimava-lhe no peito; não conseguia aceitar que o mestre permitisse a presença daquele homem, que permaneceu calado enquanto a filha havia cometido a sua falta em público.
O visitante pediu ao mestre para falar a sós com ele. Abu Mahmoud virou-se e chamou em voz alta:
— Numan , meu rapaz! Traz-nos algumas das guloseimas da loja de ontem… pega no dinheiro que está sobre a mesa.
Numan saiu da loja e voltou cerca de meia hora depois, carregando um prato de baklava. Colocou-o cuidadosamente num pequeno prato e ofereceu-o ao seu mestre, sem dizer uma palavra, antes de sair apressadamente. Ficou do outro lado da calçada, fora do alcance dos olhares dentro da loja, acendendo um cigarro enquanto esperava o homem se afastar.
Os clientes começaram a entrar, um a um. Abu Mahmoud gesticulava, pedindo que esperassem até Numan voltar.
Um dos clientes chamou um carregador, que rapidamente se aproximou, perguntando por Numan . O carregador apontou:
— Ele está ali, na calçada.
— Por favor! — disse o cliente — Chama-o para que te guie até a mercadoria que preparei e a leve até o meu carro. Este é o teu pagamento adiantado.
Apontou para seu carro branco, estacionado atrás de um caminhão, e acrescentou:
— A porta traseira está aberta, cuidado com a mercadoria.
O carregador virou-se, gritando:
— Senhor Numan ! Não interrompa nosso trabalho, temos serviço!
Numan entrou silenciosamente, apontando para uma grande caixa de papelão:
— Leva isto para o carro do comerciante Abu Said e, se quiseres, podes pegar mais trabalho depois.
Os clientes continuaram a fazer pedidos, e Numan respondia sempre com cortesia e paciência. Um deles pediu novamente um tecido que havia devolvido antes. Numan respondeu com um gesto de desculpa:
— Infelizmente, Abu Zuhair, o tecido foi vendido ontem.
O comerciante pediu que outro funcionário lhe conseguisse um rapidamente. Numan olhou para o seu mestre, que tomou a dianteira e garantiu ao cliente que tentaria ajudá-lo.
O homem estranho permaneceu parado, observando Numan em silêncio pesado. Ele fingia não ver, prolongando a permanência à porta.
Finalmente, Abu Mahmoud chamou-o:
— Numan , aproxima-te.
Numan se aproximou e respondeu com gentileza:
— Sim, mestre, quer que eu traga algo para si?
— Não… mas o senhor Ahmed quer-te para um pedido — disse Abu Mahmoud, apontando discretamente para o homem.
Numan suspirou, murmurando:
— Que seja, então. O que quer agora?
O mestre ajeitou a roupa, esboçando um sorriso contido:
— Está na hora da oração. Vou à mesquita.
Pegou sua pequena bolsa, que continha uma toalha e o sapato, e dirigiu-se à porta, despedindo-se com um leve sorriso enquanto saía, deixando Numan à porta, à beira de um momento novo… um instante que não se parecia com nenhum outro daquela tarde.
Capítulo Cinco:
O homem estendeu a mão com um sorriso contido e disse, num tom sereno:
— A paz esteja consigo.
Numan ergueu o olhar, devolvendo a saudação de forma breve, e apertou-lhe a mão devagar, como se algo dentro dele hesitasse, mas acabou por cumprir o dever do encontro.
O visitante sentou-se, levantando ligeiramente as mãos como quem pede licença, e falou com uma voz onde se insinuava a incerteza:
— O senhor Abu Mahmoud, dono desta loja, falou-me muito de si… Disse-me que é um jovem de princípios, que não se distrai com os olhares dos que passam, porque vê apenas o seu caminho, o seu propósito. Falou tanto que senti que tinha chegado a hora de nos conhecermos mais de perto.
Respirou fundo antes de continuar:
— Não lhe tomarei muito tempo. Sei que tem as suas tarefas. O meu nome é Ahmad Abdul Karim. Sou engenheiro civil, muçulmano sunita, tenho quarenta e cinco anos e venho de Beirute. Tenho um gabinete de engenharia lá e sou sócio numa das maiores empresas de obras que foi fundada pelo pai da minha falecida esposa. Mais tarde juntou-se o cunhado dela, e outros familiares — todos engenheiros e empreiteiros de renome.
Fez uma pausa curta, como para reunir fôlego, e baixou o tom:
— A minha mulher e o nosso filho pequeno morreram num acidente trágico há cerca de um ano, em Beirute. Fiquei eu e a minha única filha, Muna… a mesma que estava comigo ontem.
O silêncio pairou por um instante. Depois, com a voz embargada pela emoção, continuou:
— Desde essa tragédia, a minha vida gira à volta dela. Faço tudo o que pede para que não sinta a ausência da mãe e do irmão, para que não seja esmagada pela solidão. Ontem… quando lhe faltou ao respeito, juro-lhe que não foi de propósito. Não dormiu a noite inteira. Falei-lhe com uma dureza que ela não conhecia e expliquei-lhe o que fez.
Numan levantou a cabeça devagar. A sua voz trazia um traço de tristeza:
— Que Deus tenha misericórdia dos que perdeu… Mas, com licença, o que tenho eu a ver com tudo isto?
O Sr. Ahmad sorriu com uma melancolia contida:
— Tem toda a razão em estranhar. O que é que o senhor tem a ver com isto? Porque estamos nós em Damasco? Porque andávamos à procura daquele tecido específico? E porque é que Muna se zangou quando o encontrou aqui e achou que não estava a colaborar?
Respirou fundo e concluiu:
— O que vou contar não é uma desculpa para o comportamento dela. Não é porque seja uma menina mimada ou porque seja a minha única filha. É porque ela é simplesmente… a minha vida. Uma menina frágil, de sentimentos delicados, que perdeu a mãe há pouco tempo e continua, no fundo, presa a ela.
De repente, ele silenciou. Tirou um lenço do bolso e enxugou lágrimas que corriam sem pedir permissão, até que o branco dos seus olhos começou a se misturar a um rubor de emoção contida. Curvou a cabeça, tentando ocultar o que sentia, e falou com a voz embargada:
— A mãe dela… queimou-se naquele acidente… e o irmão também.
Em seguida, a voz falhou-lhe, entrecortada pela emoção:
— Ela usava um vestido novo, feito pelo melhor dos alfaiates. Ia parecer uma rainha na festa de formatura da nossa filha, Muna… E os avós, meus sogros, planejaram a surpresa com todo cuidado, para celebrar a conquista da nossa única filha na escola com nota máxima… Mas o destino quis de outro modo. Minha esposa e meu filho pequeno sofreram o acidente enquanto se dirigiam, com os pais dela, para o hotel reservado para a ocasião.
Ele respirou fundo, segurando a voz:
— Do vestido, só restaram pequenos pedaços, mal dando para reconhecer o tecido ou o tipo. A peça que ficou com Muna era a maior de todas. E, desde então, ela insiste em comprar um tecido parecido para confeccionar um vestido que ela usará em memória da mãe, do irmão e dos avós. Muna e as tias procuraram em todas as lojas de tecidos no Líbano… até que descobriram, com quem fez o vestido original, que aquele tipo de tecido vinha de Damasco, recomendado para ocasiões muito especiais.
Ele fez uma pausa, como se ponderasse cada palavra, e concluiu:
— É por isso que viemos. Há uma semana que buscamos, todos os dias, desde cedo até o anoitecer.
No início, Numan ouvia com frieza, encostado na cadeira com postura reta. Mas aos poucos, suas feições começaram a mudar. Aproximou-se do homem, estendeu novamente a mão e falou com a voz carregada de emoção:
— Peço desculpas, senhor, se algo do meu comportamento ofendeu-vos… Mas por que me deixaram para trás ontem? Entraram em lojas sem necessidade… senti como se me punissem! Cheguei a pensar que queriam humilhar-me… Eu seguia-vos como um escravo. Estava enganado? Perdoe-me, tudo se misturou na minha mente e me doeu profundamente.
Abaixou a cabeça por um instante, antes de continuar, tentando explicar que o que sentira não eram palavras rudes… mas um golpe contra algo frágil dentro de si, algo ainda sem nome:
— Guardei tudo para mim, para respeitar-me e respeitar meu mestre. Ele viu em mim um reflexo de seus sonhos e confiou-me uma responsabilidade que não realizou em sua juventude. Ele apostou em mim. Por isso, implorei a alguns comerciantes e carregadores que não contassem ao meu mestre o que viram. É verdade que sou um simples trabalhador, mas sei pensar, sei onde colocar meus pés. Por favor, senhor… deixe-me em paz. Peça à sua filha que aceite minhas desculpas, ou diga-lhe a verdade, transmita meu pesar pela perda de sua mãe, do irmão e dos avós.
Nesse instante, o Hajj Abu Mahmoud entrou na loja. Numan levantou-se imediatamente, pedindo desculpas novamente ao visitante, e recebeu seu mestre à porta com grande respeito:
— Que Allah aceite, meu mestre.
O mestre respondeu com calma:
— Que Allah aceite de nós e de vós as boas ações.
Sentou-se à sua mesa e perguntou:
— Conseguiste providenciar o pedido do senhor Abu Zuhair? Encontrei-o na mesquita e perguntou novamente.
Numan aproximou-se, passos leves, e sussurrou:
— Mestre, o pedido que Abu Zuhair deseja… está com este homem. Por favor, não quero falar com ele novamente.
Levantou a cabeça e disse em voz audível:
— Com sua permissão, irei rezar o Zuhr.
O senhor Ahmed permaneceu sentado, observando atentamente uns papéis à sua frente, como se procurasse algo além de contas.
Quando Numan voltou da oração, encontrou o tecido estendido sobre a mesa, sem sinal dos acompanhantes.
Numan olhou para seu mestre com surpresa, mas este sorriu, com uma calma carregada de mistério:
— Por favor, meça dois metros e meio deste tecido, ajuste os dados, o senhor Abu Zuhair virá buscá-lo. Pegue um bom papel para embrulho e um saco adequado… das lojas de varejo. O pagamento, desta vez, sairá do seu bolso.
Notando a expressão de espanto no rosto de Numan, acrescentou:
— Falaremos mais tarde.
Numan executou a tarefa com cuidado, voltou com o saco elegante e entregou o pacote ao mestre:
— Aqui está, mestre.
Minutos depois, o comerciante Abu Zuhair entrou. Numan lhe entregou o tecido, o mestre recebeu o pagamento, e o comerciante partiu rapidamente.
Aproximando-se do mestre, Numan perguntou, cauteloso:
— Mestre, como aconteceu isso?
O mestre sorriu e respondeu:
— Simples. Havia um homem que comprou uma grande quantidade de tecido, mas precisava apenas de dois metros e meio, e pagou mais do que podia. Ao mesmo tempo, tínhamos um outro comerciante que precisava do restante, de qualquer maneira. Atendemos aos dois pedidos, e considerei você como o vendedor de varejo que forneceu o tecido ao senhor Ahmed… e todo o lucro gerado seria seu, sem que você percebesse.
Em seguida, tirou uma quantia de dinheiro e disse com delicada firmeza:
— Este é o dinheiro. É seu por direito.
Numan respondeu com sinceridade:
— Mestre, agradeço… mas trabalho aqui e recebo meu salário regularmente. Não creio que tenha feito algo que mereça isso.
O mestre balançou a cabeça, guardou o dinheiro em um pequeno cofre e falou com firmeza e ternura:
— Então, vou guardar para você até o fim do seu serviço. Agora, está quase na hora do fechamento; subirei para almoçar e descansar. Você fechará a loja… encontrará alguém esperando por você na porta.
Após uma breve pausa, acrescentou com voz escolhida cuidadosamente:
— É um convite para o almoço. Confio no anfitrião, não o deixe em apuros recusando. Confio em você e no seu julgamento… faça o que achar melhor. Mas não se esqueça de reabrir a loja depois do meio-dia. Que Allah o acompanhe.
O mestre subiu a escada lateral, passos silenciosos, murmurando orações e súplicas, enquanto Numan permanecia parado, a mente fervilhando de perguntas:
“Quem é esse homem? Por que me convidou? Posso confiar nele? Ou devo recusar educadamente?”
Mas uma voz baixa dentro dele o encorajava a aceitar… talvez fosse curiosidade, talvez algo mais… algo que se assemelhava à justiça.
Capítulo Seis:
Numan fechou a porta da loja por fora e ficou parado na calçada, esperando. Poucos instantes depois, um carro preto, um Buick, avançava lentamente pelo trânsito caótico. O vidro desceu e o rosto sorridente do senhor Ahmed surgiu, a voz carregada de urgência:
— Apressa-te, meu rapaz! A rua é estreita e os carros atrás de mim já estão buzinando!
Numan hesitou por um momento, abriu a porta e sentou-se ao lado do homem, fechando-a com cuidado antes de murmurar um cumprimento tímido. O senhor Ahmed recebeu-o com genuína cordialidade:
— Bem-vindo, senhor Numan, e obrigado por aceitar meu convite… Na verdade, um obrigado ainda maior por confiar em mim!
O homem sabia muito bem que Numan só teria vindo por recomendação do Haj Abu Mahmoud, o velho senhor que vivia no coração do rapaz como o tronco de uma árvore da infância.
Numan falou, cauteloso e respeitoso:
— Mas peço que não nos demoremos muito. Preciso estar de volta à loja às quatro e quarenta e cinco, para preparar algumas coisas antes que o Haj chegue.
O senhor Ahmed sorriu, tranquilizador:
— Não se preocupe, já conversei com o Haj sobre isso. Não ficaremos muito tempo… primeiro precisamos apenas escapar deste trânsito.
O carro seguiu pelas ruas de Damasco até parar em frente a um hotel elegante, onde o senhor Ahmed e sua filha estavam hospedados. Subiram juntos para o quarto previamente reservado, e ele indicou a Numan que se sentasse num sofá junto à janela, chamando em seguida com uma voz calorosa:
— Muna, querida! Chegamos, e trouxe comigo o senhor Numan, que insistiu em me acompanhar para pedir desculpas a ti!
Numan paralisou-se, fitando o homem com surpresa contida:
— Pedir desculpas? Como assim, senhor?
O senhor Ahmed acenou vagamente, com um gesto enigmático, e murmurou quase brincando:
— Não se preocupe com os detalhes, senhor Numan… apenas coopere comigo desta vez, por favor.
Mas Numan não aceitou a proposta. Levantou-se de repente, a voz carregada de dor:
— Desculpe… não posso fazer parte de uma encenação. O que aconteceu ontem foi suficiente, e não quero que se repita. Voltarei ao meu trabalho… assalamu alaikum.
Dirigiu-se para a porta com passos firmes, mas o senhor Ahmed alcançou-o e segurou-lhe o braço com delicadeza. Sussurrou num tom de súplica sincera:
— Por favor, fica… só desta vez. Sou eu quem te pede desculpa. Não te pedi nada impossível… apenas lhe dês uma oportunidade. Peço-te.
Nos olhos dele havia um brilho de apelo, como se se agarrasse a uma tábua de salvação. Nesse instante, uma voz vinda do interior do quarto irrompeu, cortante e furiosa:
— Não quero vê-lo! Pai, manda-o embora! Não quero ver esse idiota!
Era a voz de Muna. Ainda assim, o senhor Ahmed não largou o braço do rapaz; apenas fez-lhe sinal para o seguir até ao salão do rés-do-chão, onde poderiam conversar em paz.
Sentaram-se num canto discreto, longe dos ruídos do átrio. O senhor Ahmed falou num tom baixo, uma mistura de mágoa e súplica:
— Esqueçamos o que aconteceu e comecemos de novo. Contei-te o acidente, mas não te disse como deixou na alma de Muna uma ferida que não cicatriza. Imagina… uma rapariga perder, de uma só vez, a mãe, o irmão e os avós. Nenhum coração aguenta, nenhuma razão suporta. Desde então transformou-se noutra pessoa. Já não confia em ninguém. Qualquer gesto que interprete como uma ameaça à memória da mãe, vê-o como ataque pessoal.
Fez uma pausa e olhou-o nos olhos:
— O teu comportamento ontem… a tua calma, o teu autocontrolo… foi de uma nobreza rara. Mas para Muna, pareceu frieza, um insulto velado. Aquele pedaço de tecido que ela trazia consigo… era da mãe, nunca o largou desde que morreu. Tudo nela é um campo minado de recordações. Vê em cada aproximação uma ameaça, em cada gentileza um engano. Desde a morte da mãe, é como se caminhasse sobre uma ferida aberta, ferindo-se e ferindo, sem perceber.
Uma lágrima deslizou-lhe pela face. Suspirou:
— Não te peço que peças desculpa por estares errado, mas para a aliviar, para a ajudar a sair desta sombra que não a larga. Acredita, não é a primeira vez que perde um amigo ou ganha uma inimizade por causa da forma como se exprime. Perdemos os nossos familiares em Beirute… viemos a Damasco à procura de um novo começo, como quem procura um tecido raro.
O senhor Ahmed esboçou um sorriso cansado e estendeu a mão a Numan:
— Podemos voltar a apertar as mãos? Preciso de um amigo como tu… Sinto que Deus te pôs no meu caminho. Não sei porquê, mas encontro alívio ao falar contigo… Oh, o peso que carrego, a amargura do acidente que me mudou tanto quanto mudou a minha filha. Desde que perdi a minha mulher e o meu filho, Muna tornou-se toda a minha vida… Vejo nela o prolongamento da minha alma, e não tenho outro objetivo senão protegê-la.
Apesar de se mostrar aberto às pessoas, havia no coração do senhor Ahmed uma inquietação constante, uma sombra que lhe impedia a entrega plena. O medo do rebentar da ira de Muna, o receio de falhar com ela, de magoá la sem querer, governava cada gesto seu. Esse sentimento de culpa antigo, que nunca o abandonara, levava-o agora a sacrificar o próprio orgulho diante de Numan — talvez, assim, pudesse salvá la.
Numan olhou para a mão estendida, hesitou um instante e apertou-a com calma:
— A sua amizade honra-me, senhor Ahmed… e ajudarei no que puder. Mas quanto à sua filha… isso é outra história. Não posso manter com ela qualquer relação… nem conversa, nem sequer um olhar. Peço-lhe que compreenda a minha posição.
O senhor Ahmed sorriu com um toque de compaixão, como quem aceita um limite que lhe dói:
— Tens razão, meu rapaz… e, mesmo assim, obrigado. Apenas… deixa-me convidar-te amanhã para um almoço simples.
Capítulo Sete:
No dia seguinte, Numan fechou a loja ao meio-dia. Mal pôs os pés na calçada, avistou o senhor Ahmad encostado ao carro, como quem vigia o tempo mais do que o movimento da rua.
Entraram juntos, e o automóvel deslizou pelas avenidas de Damasco até chegarem a um parque de estacionamento no centro da cidade. Ahmad lançou um olhar cauteloso ao redor, depois sorriu com ironia:
— Esta é a tua cidade… conheces algum bom restaurante sírio?
Numan sorriu de leve e abanou a cabeça:
— Acredite, senhor, em Damasco só conheço o caminho da loja.
O homem soltou uma gargalhada franca e avançou para uma das pequenas mercearias. Trocaram algumas palavras rápidas, e logo voltou, pegando Numan pelo braço com entusiasmo juvenil:
— Anda… disseram-me que há um restaurante aqui perto.
Foram caminhando, dobrando esquinas como se procurassem no mapa de uma memória alheia. A certa altura, Numan hesitou, desconfiado:
— Mas… para onde estamos a ir afinal?
Ahmad sorriu enigmático, quase cúmplice:
— Chegámos.
Pararam diante de uma porta discreta. Do interior escapava um perfume quente de especiarias que parecia falar diretamente às lembranças. Um empregado sorridente abriu espaço e conduziu-os até uma mesa que, à primeira vista, parecia não estar pronta. Sobre ela, repousavam ainda uma pequena carteira preta de senhora e alguns restos esquecidos.
Numan sentou-se sem jeito, os olhos presos naquele objeto que parecia carregar uma presença ausente. Não comentou nada, mas as palavras acabaram por escapar, tímidas, quase como uma denúncia:
— Como queira, senhor… ou talvez como já estivesse combinado com a senhorita. Só que prepararam tudo para parecer… inesperado.
Ahmad não conteve o riso, batendo com a mão na mesa:
— Apanhaste-nos, senhor Numan!
Antes que pudesse responder, aproximou-se uma jovem de calças pretas e uma camisola cinzenta de mangas compridas. Olhando para o pai, exclamou:
— Demoraram tanto, papá… acabei por comer metade dos frutos secos de tanta fome!
O pai apontou para Numan, sorrindo com intenção:
— Conhece-o bem… é o rapaz sensato e inteligente de quem lhe falei.
Ela respondeu num tom de indiferença, enquanto acenava ao empregado — ou assim lhe pareceu ao hóspede silencioso:
— Deixe-me comer primeiro… depois falamos.
A comida chegou, e os três mergulharam num silêncio pesado. Numan limitava-se a mastigar pequenas porções, sem erguer os olhos do prato. O senhor Ahmad fez sinal ao empregado para cuidar dele, e em pouco tempo a mesa encheu-se de travessas variadas.
Por trás do sabor dos pratos, vagueavam pensamentos mudos, como sombras a rondar. A jovem parecia devorar cada garfada com uma pressa quase nervosa, como se a fome lhe corroesse os nervos. Mas, pouco a pouco, os traços do rosto suavizaram-se, a dureza diluiu-se.
Numan percebeu essa mudança, embora mantivesse a compostura. Apenas olhares furtivos lhe escapavam, rápidos, na direção dela. E ela, apanhando uma dessas fugas do olhar, devolveu-lhe outro, breve, quase uma pergunta muda:
“Está a ignorar-me? Ou tem medo de se expor?”
Dentro dele, uma voz murmurava. Era como um diálogo secreto, nascido do silêncio:
“Numan, rapaz de convicções rígidas, desde que chegaste a Damasco que as tuas certezas começaram a vacilar. A cidade, com o tumulto das ruas, os mercados apinhados, o excesso de cores e ruídos… tudo isto abala os alicerces que julgavas inamovíveis.”
No intervalo entre duas garfadas, ela quebrou o silêncio num sussurro:
— Parece que não gosta de conversar durante as refeições… não é?
Ele ergueu os olhos. Por trás do véu do cansaço e da fome, encontrou nos dela um lampejo quase imperceptível… algo que se parecia com um pedido de desculpa, embora sem palavras.
Numan não precisava de grande inteligência para perceber que aquela jovem dura já não era a mesma. Algo nela se tinha partido, ou talvez apenas se tivesse suavizado sob o peso do cansaço… ou ainda sob o efeito da sua presença silenciosa, que nada exigia e que respondia à sua aspereza apenas com uma paciência rara.
De forma desajeitada, Muna parecia querer dizer:
“Não sou aquilo que vês…”
E Numan, com a serenidade do seu olhar, parecia escutar essa voz secreta. Limitava-se a sorrir, servindo-lhe mais um copo de água sem nada perguntar.
Ergueu a cabeça devagar, interrompeu por um instante a refeição e disse com delicadeza:
— Não exatamente… diria apenas que não sou muito bom nisso, sobretudo em momentos inesperados como este.
Ela sorriu — um sorriso leve, como se algo frágil se tivesse estilhaçado dentro dela. Não esperava uma resposta assim: sem ira, sem reservas, apenas uma gentileza cautelosa.
O silêncio que se seguiu já não era pesado; parecia tecido de pequenas fibras de algodão a cair com pudor. Muna, que antes ardia em explosões rápidas, procurava agora as palavras como quem tacteia no escuro do próprio coração.
O senhor Ahmad interveio, rindo-se:
— Muna, não envergonhes o nosso convidado… Ele é paciente, sim, mas já vimos ontem — e antes de ontem — que não gosta muito de surpresas!
Riram todos com leveza, até Muna, ainda que no riso dela houvesse uma sombra de hesitação.
Olhou então para Numan e disse, desta vez sem agressividade:
— Estava zangada ontem… e no dia anterior também. Muito zangada. Reconheço que não me comportei bem.
Numan reviu interiormente o que acontecera entre eles. Apesar da primeira sensação de humilhação — a primeira ferida real a abalar o seu orgulho silencioso —, havia agora qualquer coisa diferente. O cansaço dela, a dureza disfarçada de medo, a incapacidade de expressar-se com ternura, tudo isso, aliado ao relato do pai sobre a tragédia, movia algo no seu coração. Não era fraqueza nem submissão: era apenas o reconhecimento de uma humanidade partilhada, profunda, que os unia sem palavras.
Também naquele dia, desde o instante em que Muna entrou no restaurante, Numan já não conseguia vê-la como a jovem dura e intransigente que tantas vezes o havia afrontado. Ela parecia cansada, quebrada na sua rigidez. E ele — educado a respeitar a fragilidade humana, mesmo quando vinha de um adversário — não conseguiu virar-lhe as costas.
Tentou então encerrar a luta que começava a crescer dentro dele, entre o peso das convicções rígidas do passado e o impulso instintivo de perdoar, de procurar desculpas para os outros na esperança de mudança. Muna, ali diante dele, era o espelho desse conflito: a contradição viva que o obrigava a escutá-la. Não porque tivesse renunciado por completo às suas certezas antigas, mas porque a vida lhe ensinava uma nova lição — como o seu mestre lhe dissera um dia:
“Os corações não são brancos ou negros; são feitos de matizes que se entrelaçam.”
Respondeu ao pedido de desculpa dela com um gesto de respeito:
— Também eu peço desculpa… se alguma vez pareceu que desvalorizei algo que te era precioso. Nunca foi essa a minha intenção.
Caíram num silêncio breve, mas dessa vez leve, quase sereno, como se um pequeno acordo tivesse sido selado entre dois corações.
Aprox¬imou-se o empregado e perguntou se desejavam café.
— Se o senhor Numan não se importar — disse Muna —, eu prefiro o café amargo.
Numan sorriu de modo tranquilo:
— Também gosto dele… embora costume bebê-lo doce.
O senhor Ahmad fez sinal ao empregado:
— Então, três cafés fortes… e deixem a sobremesa por minha conta.
Muna riu, dirigindo-se ao pai:
— De certeza que vais pedir knafeh ou qualquer coisa do género… como sempre.
Ele piscou-lhe o olho:
— Só por tua causa… e para restaurar a paz. O doce corrige o que as palavras estragam.
E, voltando-se para Numan com a ternura de um pai, acrescentou:
— Que me dizes? Não é um bom começo para nós?
Numan respondeu com um sorriso sereno:
— Quando os corações se purificam… todo caminho se torna bom.
Pediu licença para lavar as mãos, e o senhor Ahmed o acompanhou. Enquanto a água escorria pelos dedos, Ahmed comentou:
— Depois de amanhã é sexta-feira, dia de descanso. Que tal passarmos juntos? Damasco tem lugares que merecem ser vistos.
Numan enxugou o rosto com uma toalha de papel e respondeu:
— Tenho alguns compromissos marcados para depois de amanhã, mas…
Ahmed o interrompeu com um meio sorriso:
— Então adie-os. Espero você às nove da manhã, no ponto habitual. Não recuse, por favor. Não percebeu como ficamos contentes em tê-lo conosco hoje?
Numan apenas acenou em silêncio, concordando, e voltaram à mesa.
Mais tarde, quando o deixaram perto do bairro de al-Harika, antes que Numan descesse do carro, Muna reuniu coragem. Com a voz quase inaudível, disse-lhe:
— Passou tão depressa… como se aqueles instantes fossem o único tempo que se parecia com a verdade.
E, num tom mais alto, acrescentou:
— Obrigada pela sua gentileza hoje… e também pela sua paciência.
Numan voltou-se para ela. Havia em seus olhos um calor novo, discreto, e respondeu suavemente:
— Não há de quê… Na verdade, eu é que fui o convidado de vocês. O agradecimento deve ser meu, não de vocês.
Fechou a porta com delicadeza e seguiu seu caminho. Seus passos eram tranquilos, mas mais leves do que de costume, como se algo dentro dele começasse a mover-se em silêncio, invisível, mas real.
Entrou na loja com um andar sereno, saudou com uma voz grave, quase sonhadora, e dirigiu-se à mesa de exposição, perdido numa floresta de pensamentos ainda em ebulição. As palavras de Muna continuavam a ecoar em seus ouvidos:
“Passou tão depressa… como se aqueles instantes fossem o único tempo que se parecia com a verdade.”
O velho Abu Mahmoud, sentado num canto a organizar faturas, ergueu o olhar e sorriu:
— Você se atrasou um pouco, meu filho… mas o seu rosto mostra que esse tempo não foi desperdiçado.
Numan abriu a porta lateral da vitrine e respondeu:
— Sim… foi um encontro diferente. Como se tivesse conhecido uma pessoa e visitado um lugar que não se parecem em nada com o habitual.
O velho Abu Mahmoud aproximou-se, pousando a mão com delicadeza sobre o ombro dele:
— Alguns encontros são como a chuva, meu rapaz. Não sabemos quando vão cair, mas deixam sempre algo em nós que não se esquece.

À Beira do Sonho 02