Parte Oito
Numan continuou:
O investigador perguntou com um tom quase formal:
— “Você pertencia a alguma organização secreta?”
— “Não.”
— “Você se encontrou com pessoas suspeitas?”
— “Encontrei colegas de estudo, vendedores de livros em livrarias respeitáveis ou nas calçadas, diretores de bibliotecas públicas, um professor de literatura que dava palestras…
E mais importante que todos eles: minha mãe.
Minha mãe, que plantou em mim o amor pela leitura, e me esperava todas as noites, sem dormir até eu voltar.”
— “Você escreveu publicações políticas?”
— “Escrevi pensamentos, alguns versos que chamo de poesia, e resumos que juntei das margens dos livros que li… Não foram impressos nem distribuídos. E agora estão em suas mãos.”
— “Você acredita que o regime é corrupto?”
Olhei para ele com firmeza e disse:
— “Acredito que todo regime que não presta contas gera corrupção… mesmo que comece com profetas.”
O investigador ficou em silêncio por um instante, depois se levantou, murmurando como quem fala consigo mesmo:
— “Talvez você seja mais perigoso do que eu pensava…”
Então se virou para mim, com uma voz carregada de mistério:
— “Continuaremos amanhã… e farei deste nosso diálogo algo inesquecível.”
Aplaudiu com uma mão, e um homem de roupas cinza desbotadas entrou. Não trazia arma, não parecia irritado, mas havia nos olhos dele um gelo que causava arrepios.
O investigador falou com um tom calmo:
— “Leve o senhor Numan de volta à cela… para descansar. Amanhã é um novo dia.”
Levantei-me da cadeira como se meu corpo tivesse perdido todo o peso. Meus passos eram pesados, não apenas pelo cansaço, mas pelo peso da imagem que não saía dos meus olhos… e pelo que ainda estava por vir.
No corredor inferior, as lâmpadas zumbiam de forma intermitente, como se a luz caísse gota a gota sobre corpos sem nome.
O guarda abriu a porta da cela e fez um gesto para eu entrar.
Falou com voz monótona, como repetindo instruções sem alma:
— “Durma agora… os pesadelos esperam por quem acorda.”
E fechou a porta.
Encolhi-me sobre mim mesmo, não porque o espaço era pequeno, mas porque a alma se apertava em seu próprio peso.
O cobertor ao meu lado deixou de ser um cobertor… tornou-se a pele pesada do silêncio, separando-me do mundo.
Não consegui dormir. Deitei-me de costas sobre a plataforma de cimento.
A parede repetia o eco de suas palavras:
— “Praticamos a arte da prevenção, Numan …”
Muna sussurrou, contendo o tremor dos lábios:
— “Como alguém pode dormir depois disso?”
O pai dela pousou a mão sobre a dela:
— “Não… dormir aqui é uma morte temporária. O corpo não descansa, a mente não se aquieta.”
Após um breve silêncio, acrescentou:
— “Mas Numan … faz nascer entre as pedras um coração que não se quebra.”
Numan continuou:
— “No final da noite, deitado no chão frio, senti que algo se quebrava em mim, e outra coisa brotava. Um movimento discreto percorreu a cela, abri os olhos.
Um rato enorme estava sobre meu peito, encarando-me face a face. Seus longos bigodes se esticavam, o nariz tremia como se cheirasse se diante dele estava um inimigo… ou comida.
Estendi a mão lentamente e peguei o último pedaço de pão duro ao lado da minha cabeça, colocando-o perto dele.
O rato aproximou-se e começou a roê-lo, calmo e deliberado. Eu o observava, imóvel, sem atrever-me a abrir mais os olhos ou emitir qualquer som, no silêncio pesado das últimas horas antes do amanhecer.
Quando terminou, lançou-me um olhar rápido e correu para a abertura do vaso sanitário no chão, retornando de onde viera.
A escuridão da cela parecia uma página negra, cheia de imagens e palavras ainda não escritas…
Mas a tinta dentro de mim não era mais tinta: era sangue, dor e perguntas sem respostas.”
O pai de Muna disse:
— “Vamos deixar Numan descansar um pouco em seu quarto. Preparemos o almoço. Ele passou por um tempo exaustivo e precisa recuperar forças.”
Na cozinha, o vapor subia da panela, preenchendo o ar com um aroma quente, como se quisesse apagar o frio que as palavras haviam deixado no coração.
Muna estava parada, cortando os legumes lentamente; a faca batia na tábua de madeira com um ritmo quase automático, como um pulso inquieto que não encontrava descanso.
O pai dela, enquanto derramava um pouco de sal na sopa sem olhar para ela, disse:
— “Eu sabia que a quarta noite seria a mais difícil… mas ele se manteve firme, muito mais do que eu esperava.”
Muna ficou em silêncio por um instante e murmurou:
— “Pai… aquele que pousou sobre o peito dele… era um rato… ou uma ilusão, um espectro com corpo de rato?
Porque não consigo tirar essa imagem da minha cabeça, como se fosse o rato que o interrogava.”
O pai levantou a tampa da panela e a recolocou, dizendo:
— “No cárcere, não há diferença entre o rato e o interrogador… todos aparecem na escuridão, procurando um ponto fraco, um pedacinho de medo para abrir caminho.”
Muna sentou-se na cadeira, encostou a cabeça na parede e disse em voz baixa:
— “Ele disse: ‘Praticamos a arte da prevenção, Numan …’
Pai, você não acha que essa frase sozinha… é um veneno coberto de sorriso?”
— “Sim… veneno puro. Prevenção para eles significa que você deve se submeter antes mesmo de ser levado a isso. Que você assuste a si mesmo antes que alguém o assuste.
É uma prevenção contra a dignidade, não contra a dor.”
Muna olhou para ele, com olhos atravessados por sombras distantes:
— “Mas Numan … não se deixou derrotar, nem mesmo ao responder sobre o sistema, quando disse: ‘Todo sistema que não é responsabilizado gera corrupção, mesmo que comece com profetas…’
Por um instante, senti que o interrogador não respondeu, porque temeu que a verdade tivesse sido dita.”
O pai aproximou-se, colocou um copo de água diante dela e sentou-se ao lado:
— “Sim… aquela frase foi uma lâmina no peito da tirania.
E por isso ele disse a ele: ‘Talvez você seja mais perigoso do que eu imaginava…’
Porque o perigo não está em quem ergue uma arma, mas em quem planta uma ideia.”
Muna sorriu, um sorriso misto de orgulho e dor, e sussurrou:
— “Que lindo… no auge de sua fraqueza, ele recusa a salvação a qualquer preço.
E na presença da dor, levanta a cabeça como quem diz: só podem levar meu corpo… minha alma, essa, vocês não a terão.”
O pai levantou-se, apagou o fogo sob a panela e olhou pela janela, como se contemplasse algo invisível.
Disse calmamente:
— “Amanhã… talvez eles exijam dele mais do que pode suportar.
Tentarão negociar suas palavras, seu silêncio, até seu próprio nome.”
Depois se voltou para Muna e acrescentou:
— “Mas ele não cairá em suas armadilhas; é mais atento que isso.”
Muna perguntou, com a voz trêmula:
— “E você… como tem tanta certeza?”
Ele se aproximou, acariciou seu ombro e respondeu:
— “Porque ele é filho do sonho… não do medo.”
O silêncio pesado dominava a cozinha, interrompido apenas pelo som da colher mexendo a comida, como um eco do tempo que se recusa a passar.
A luz da tarde penetrava pela janela emoldurada por vidro fosco, desenhando na mesa linhas de ouro empoeiradas, lembrando as marcas do tempo no rosto de uma mãe cansada de esperar.
Muna chamou Numan , pois a comida estava pronta. Ele apareceu na porta de seu quarto, agradeceu com palavras breves e indicou que precisava de descanso mais do que de alimento.
O aroma da comida começava a perder o calor quando Muna se sentou diante do pai à mesa comprida da cozinha. O prato diante dela não era convidativo, mas ela levou uma garfada à boca com relutância.
O pai percebeu sua inquietação e disse calmamente, enquanto se servia de uma pequena porção:
— “Coma, Muna , aqueles nas celas não têm esse privilégio.”
Ela baixou a cabeça e murmurou, com vergonha:
— “Desculpe… a comida na minha boca parece pedra. Sempre que lembro da imagem do rato sobre ele… não consigo.”
O pai suspirou lentamente, colocou a colher de lado e olhou em seus olhos:
— “O que Numan fez na noite passada não foi apenas suportar a crueldade; foi uma lição de dignidade. Até o rato, naquele instante, não era um inimigo… era um companheiro na cela, faminto como ele, perdido como ele.”
Muna soltou um suspiro leve:
— “Será que ele não teve medo? Um homem naquela situação, com aquela criatura sobre ele, e a imagem que viu, o som que ainda ecoa em seus ouvidos: ‘Praticamos a arte da prevenção, Numan ’. Isso não destrói alguém?”
O pai respondeu, sem elevar a voz:
— “Talvez sim. Talvez não. Numan é daqueles que, ao serem quebrados, levantam-se mais claros… não mais frágeis.”
Muna pegou uma pequena garfada e a devolveu ao prato:
— “Tenho medo, pai… tudo isso parece o começo de uma tempestade, e não sabemos aonde ela nos levará.”
— “A tempestade já veio, Muna , e estamos no seu centro. Mas algumas pessoas, como Numan , não esperam que a nuvem se dissipe… elas acendem uma centelha de sonho na escuridão da tempestade.”
Muna colocou o prato de mujaddara sobre a mesa e, ao lado, serviu um prato de iogurte com pepino, sussurrando enquanto se sentava:
— “Pai… sabe? Ainda ouço a voz do investigador em meus ouvidos, aquela alternância suave entre brandura e ameaça, promessas e chantagem… algo que me assusta profundamente.”
O pai sentou-se com calma, escolhendo cada palavra sobre aquela mesa de dor, e respondeu enquanto cortava um pedaço de pão:
— “O que ele fez foi mais próximo de uma partida de xadrez… uma peça sacrificada, outra capturada, e ele espera a próxima jogada de um adversário que desconhece as regras, mas sabe como não ser derrotado.”
Muna ergueu a colher e a abaixou antes de levar à boca, olhando para o vazio:
— “Você acha que ele foi sincero quando disse a Numan : ‘Vamos transformar esta noite no início do sonho, não no fim dele’?”
O pai limpou a boca com um guardanapo e a observou atentamente:
— “A sinceridade, em alguém como ele, não é virtude, é ferramenta… ele não busca um sonho para Numan , mas um fio para tocar o nervo da verdade dentro dele, esvaziá-lo e moldá-lo novamente.”
Muna abaixou a cabeça, sussurrando:
— “Mas Numan … não era frágil. Suas palavras tinham firmeza que não se compra, uma honestidade que confunde quem está acostumado a usar a mentira como instrumento de trabalho.”
O pai sorriu fracamente:
— “Por isso eles o temeram. Quem sabe ler em tempos de doutrinação é considerado perigoso, e quem faz perguntas entre os amedrontados é visto como insolente.”
Muna finalmente estendeu a mão ao prato, pegou um pouco de mujaddara e disse:
— “Mas tenho medo por ele… medo daquele rato que subiu sobre seu peito, do frio da cela, do som das lâmpadas cansadas que geme como se estivessem morrendo.”
O pai balançou a cabeça e falou, com uma voz que parecia mais um pedido silencioso:
— “Numan , minha filha, não se quebra com facilidade. Mas ele… se arranha, sofre, e pode sangrar muito antes de se curar. E a cada dor que supera, ele sai mais profundo, mais luminoso… como metal nobre, que só se purifica no fogo.”
Muna piscou, lutando contra as lágrimas que surgiam sem aviso:
— “Pai… todo sofrimento tem um fim, não?”
Ele se levantou, caminhou até a janela e contemplou a rua vazia. Voltou-se para ela:
— “Sim, minha filha… mas o fim não é só do sofrimento. O fim é também da injustiça. Só precisamos esperar um pouco… e não esquecer o sonho.”
Do outro lado da cidade, onde o tempo parecia medido por colheres, não por chicotadas, Muna sentava-se à mesa de almoço em silêncio pesado, movendo a colher sobre o prato como se mexesse lembranças. O pai suspirou e disse, com voz calma e quase quebrada:
— “Será que metade da vida se passa numa cela… e a outra metade à espera dela?”
Muna ergueu o olhar, como se tivesse sido despertada de um transe, e disse:
— “Sinto que o seu fôlego ainda está comigo… no ar, no pão, no silêncio das paredes.”
O pai ficou em silêncio por um instante, examinando suas feições e o que não dizia, e murmurou:
— “O que ele disse naquela noite… sobre o sonho que não morre, sobre a verdade que não se engana, sobre a nobreza de dizer não… diante da morte… me lembrou você.”
Ela observou seu rosto cansado e sussurrou:
— “Eu tinha medo por ele… do frio, da noite, da dureza das ruas quando se atrasava… e não sabia que havia um frio mais intenso que o abandono, uma noite com porta de ferro e um silêncio insuportável.”
O pai colocou a colher de lado, como se a comida não tivesse mais sentido, e disse:
— “E lá… na cela, ele deu seu pão ao rato, para que não o atacasse… e nós, lá fora, quase fomos devorados pela ansiedade.”
Os olhos de Muna se encheram de lágrimas, e ela disse:
— “O rato foi mais fácil para ele do que abrir mão de sua dignidade ou mentir para sobreviver. Ele ainda é livre… mesmo atrás das grades.”
O pai respondeu com um sorriso triste:
— “A liberdade, minha filha, não se mede pelas correntes, mas pela capacidade de não trocar de pele… quando te pedem para vendê-la.”
Depois acrescentou, levantando-se lentamente:
— “Vamos lavar os pratos juntos… talvez possamos lavar também este peso que nos pressiona o peito.”
Muna se levantou, enxugou uma lágrima que escapou, e disse:
— “Sim, pai… e o sal que fica grudado nos pratos não é mais salgado do que esta espera.”
Na cozinha, os pratos eram lavados em silêncio, mas a água parecia contar coisas que não se podiam dizer. O som da torneira lembrava um lamento suave, e a espuma nos pratos parecia sonhos que não encontraram onde repousar.
Muna segurava o prato com cuidado, passando-o ao pai para secar, como se entregasse um fragmento de memória, e ele o recebia com mãos moldadas pela espera. Enquanto passava o pano sobre um prato branco, disse:
— “Sabe, o que mais me assusta não é o que Numan enfrenta agora… é que a escuridão se infiltre em seu coração.”
Muna respondeu, com voz fraca, esfregando uma pequena xícara:
— “O coração dele é feito de luz que a escuridão não apaga, pai… mas temo que essa luz se torne uma dor que nunca cicatriza.”
O pai balançou a cabeça lentamente:
— “Os que resistem lá não saem como eram… saem carregando uma ferida que se parece com a própria visão.”
Ficaram em silêncio por um instante, até que Muna perguntou:
— “Você teria resistido se estivesse no lugar dele?”
Ele respondeu sem olhar para ela:
— “Não sei… talvez eu tentasse, mas não tenho a coragem dele. Numan não é apenas nosso filho, Muna … ele é filho dos livros que leu, dos poemas em que acreditou, dos sonhos que a mãe plantou em seu peito.”
Muna baixou a cabeça e sussurrou como se falasse consigo mesma:
— “Queria que ele se juntasse a nós agora para nos ouvir… que soubesse que em cada momento rezamos por ele… e que esta casa, sem sua voz, não é mais uma casa, mas um eco que não termina.”
O pai parou de enxugar, colocou o copo de lado e disse:
— “Chame-o do quarto. As casas conhecem seus filhos… para que ele não fique sozinho e sinta que ainda está entre aqueles que a muralha ocultou.”
Ficaram em silêncio por alguns instantes. Muna olhou para o relógio e murmurou:
— “Achas que a próxima noite será mais difícil?”
O pai respondeu, com a voz baixa:
— “Cada noite no cárcere é um novo exame. Mas a sexta… talvez seja um começo, não um fim, no caminho do sonho.”
Levantou-se devagar, pegou no prato para colocá-lo no lava-loiça e, enquanto enxugava as mãos, disse:
— “Vem… vamos escrever o que vimos, o que compreendemos. Se o sonho não for escrito, perde-se entre as paredes.”
Numan regressou com passos calmos e juntou-se a eles na varanda que dava para o jardim. Sobre uma mesinha lateral repousavam um bule de chá e três copos. O ar da tarde acariciava suavemente as folhas das árvores, e o perfume do jasmim subia do fundo do jardim como uma memória antiga que despertava a cada instante de silêncio.
Numan estendeu a mão para servir o chá, mas Muna levantou-se com a sua leveza habitual, entrou em casa e voltou trazendo um copo de sumo de laranja fresco, coberto por um véu de orvalho.
Estendeu-o com um sorriso quente:
— “Deixa o chá para nós. Este é para ti.”
Ele recebeu o copo; as mãos tocaram-se por um segundo, como se algo invisível tivesse passado entre os dois, antes de ele se sentar.
O pai olhou para Numan com um interesse evidente, a sua voz tingida de ternura paterna:
— “Numan , meu rapaz… queres continuar o que começámos? Escutamos-te com todo o coração, partilhamos contigo uma memória pesada, para que não fiques sozinho com as tuas paredes. Ou preferes adiar? Ou… parar?”
Numan ergueu o olhar para o pai e para a filha, como se procurasse algo nos olhos deles, e respondeu com um tom sereno que parecia tranquilidade:
— “Agradeço-vos este acolhimento… Desde que saí do cárcere, até esta manhã, as suas sombras continuavam a acenar-me no horizonte, dia e noite. Custou-me falar com alguém antes de vós, não por falta de confiança, mas porque eu próprio ainda não tinha saído de lá completamente. Agora sinto um alívio no peito, uma calma que vai entrando no meu coração aos poucos… e é isso que me leva a querer continuar convosco, se não for peso para vós, nem vos causar desconforto.”
O Sr. Ahmed respondeu de imediato, com um sorriso que se abriu no rosto:
— “Não te preocupes connosco, meu rapaz… Estamos ainda mais atentos ao que tens para dizer. Não é por curiosidade que te ouvimos, mas por ti. Para que te alivies.”
Numa virada lenta, Numan fixou os olhos em Muna . A sua voz saiu baixa, carregando um fio de ternura misturada ao receio:
— E tu, Muna … começo a temer pelos efeitos do que te revelei, pela brutalidade dessas memórias.
Ela respondeu sem hesitar, num tom firme, com os olhos abertos para uma verdade que parecia maior do que os dois:
— Podes estar certo, o que o meu pai disse vale igualmente para mim. Talvez eu deseje ouvir-te ainda mais do que ele. Não é desafio; é compreensão. Saber o que viveste é também conhecer-te.
Numan respirou fundo, como quem liberta um peso antigo, e disse:
— Então… vou contar-vos o que aconteceu na sexta noite naquele lugar…
Calou-se por um instante. Levou o copo aos lábios, sorveu um gole do sumo. Depois continuou:
— A noite, na cela, não era muito diferente das anteriores, salvo por um detalhe: o silêncio tornara-se mais pesado e a escuridão mais densa, como se as paredes encolhessem a cada pensamento não dito.
Estava sentado encostado ao muro, as costas apoiadas na manta áspera, os olhos semicerrados. Não era sono nem vigília — era um instante suspenso, sem medo do tempo, apenas do que vinha depois.
De repente, a porta de ferro abriu-se com um som familiar: o chocalhar da chave, o bater seco das botas no corredor. Entrou um guarda. Apontou-me com o dedo, sem pronunciar palavra. Levantei-me sem perguntar nada — ali as perguntas não se faziam, guardavam-se.
Levou-me pelo mesmo lanço de escadas, pelo mesmo corredor, até à mesma sala: o gabinete do interrogador silencioso, construído como se fosse feito do gelo do tempo.
Ele já me esperava, com o mesmo sorriso cinzento e a luz baça a cair-lhe sobre o rosto. Indicou a cadeira diante de si:
— Senta-te, Numan . Sei que não dormiste, não vou demorar.
Sentei-me. Não mostrei nada: nem fraqueza nem desafio. Apenas silêncio.
Tirou então uma folha nova da gaveta e perguntou, com uma voz diferente da da véspera — havia nela curiosidade e um cansaço escondido:
— Achas que quem resiste acaba por vencer?
Olhei-o. Respondi:
— Nem sempre se vence. Mas quem resiste impede que a derrota se torne hábito.
Ele baixou o olhar, pensativo, e murmurou:
— Tenho-te observado desde o início… Há em ti algo que não se parece com os outros. Não és o mais forte, mas acreditas que aquilo que trazes dentro não tem preço.
Fiquei em silêncio. Depois continuou:
— Não vamos perder tempo… esta é uma lista de nomes… só queremos que nos digas: encontraste algum deles?
Empurrou a folha na minha direção. Li os nomes. Alguns reconhecia, outros eram estranhos. Cada nome tremia nas linhas, como se quisesse revelar-se antes mesmo de eu abrir a boca.
Respondi com calma:
— Não confirmarei o que não lembro, nem negarei o que não aconteceu. Não sou funcionário de um romance que escrevem; sou um ser humano com memória e consciência.
Riu-se, brevemente:
— Muito bem… então escolhes a memória.
— Porque é a única coisa que não podem confiscar, a menos que eu a traia — respondi.
Os olhos dele brilharam por um instante, depois o brilho desvaneceu. Disse:
— Temos tempo… continuaremos mais tarde.
Bateu palmas, e o homem silencioso de roupas cinzentas voltou. Levou-me sem uma palavra, e eu arrastava os pés cansados.
Ao regressar à cela, percebi que o conflito já não era apenas entre prisioneiro e interrogador, mas entre duas vontades: uma que aposta no medo, outra que aposta no sentido.
Sentei-me junto à parede. Não procurava mais a luz, mas uma certeza que iluminasse de dentro.
Sussurrei para mim mesmo:
— Amanhã… tem de ser escrito.
Muna tinha as mãos entrelaçadas no colo, respirando de forma irregular, como se segurasse lágrimas que não queria deixar cair. Falou baixinho:
— E o que te deu essa firmeza? Como não te quebraste?
Numan olhou-a demoradamente e respondeu:
— Talvez… porque eu sabia que não estava sozinho. Ouvia as vozes daqueles que amo ecoarem dentro de mim: “Resiste… não é só por ti.”
O senhor Ahmed murmurou, olhando para o jardim:
— Esse é o sentido… quando o sonho permanece firme perante o pesadelo.
Um breve silêncio tomou conta da varanda, como se as palavras precisassem se assentar no ar antes que a vida recomeçasse. As folhas das árvores moviam-se suavemente, como se também ouvissem, ou expressassem aquilo que a língua não podia.
O senhor Ahmed levantou-se devagar, afastando o manto do outono dos joelhos:
— Vamos entrar… o ar ficou mais frio, e o chá já não basta para nos aquecer.
Numan não respondeu; apenas assentiu e levantou-se com eles.
Dentro de casa, o calor começou a se infiltrar sob as portas, e o aroma da canela do cozinha anunciava que Muna havia preparado algo pequeno, talvez um doce ou uma lembrança.
Sentaram-se à mesa retangular, enquanto Muna colocava três pratos pequenos e cortava o bolo com delicadeza. Cada gesto das mãos dela dizia algo que ainda não se atrevera a pronunciar.
Numan segurou o copo com cuidado e disse:
— Sabem? O que mais assusta na cela não é a dor… mas o esquecimento. Que a tua voz seja apagada do mundo, que os dias passem sem que alguém sinta a tua falta ou saiba se ainda estás vivo.
O senhor Ahmed comentou, passando a ponta da colher pela borda do copo:
— O esquecimento… é no que os regimes opressores apostam: esvaziar a tua memória de ti mesmo e preenchê-la com o que lhes convém.
Numan assentiu e olhou para Muna :
— E tu? Por que queres ouvir tudo isso? Sei que carrego contigo um peso quase insuportável.
Muna ergueu a cabeça, fixando-o com profundidade, e sussurrou:
— Porque não quero que carregues sozinho. E sei que, quando a dor é contada, ela se torna menos feroz. Além disso… não quero ser apenas um capítulo feliz da tua história; quero ser testemunha dela, do início ao fim.
Pai e filha trocaram um olhar silencioso. Numan olhou-os juntos e disse, com calma:
— Então, vamos continuar. Ainda há coisas que merecem ser contadas.
Numan retomou a narrativa, envolto por um silêncio delicado, como se preparasse um relato que só pode ser dito uma vez. Muna e seu pai sentaram-se à extremidade da varanda, observando cada traço de seu rosto, como se quisessem ouvir o coração antes das palavras.
Muna inclinou-se ligeiramente para a frente, apoiando a mão sob o queixo, e sussurrou:
— Diz-me… o que viste lá?
Ele não respondeu de imediato. Baixou a cabeça por um longo momento e depois ergueu-a, dizendo:
— Ir ao escritório do investigador naquela noite foi como levantar uma cortina para um novo ato de uma peça misteriosa, uma peça cujo final não se escreve, mas se improvisa na escuridão fria, diferente de qualquer outro entardecer.
Não se passou meia hora desde que fui devolvido à cela, quando a porta se abriu novamente, e ouvi o comando seco: “Fica de pé.”
O senhor Ahmed respirou fundo, como se quisesse falar algo, mas apenas suspirou.
Numan continuou, com tom menos tenso, como quem observa memórias à distância:
— O mesmo guarda me conduziu, passos pesados no piso frio, até uma sala lateral que eu nunca havia visitado. Ali… vi algo que meus olhos não esqueceram até hoje.
Eram dois prisioneiros. Não lembro perfeitamente dos rostos deles, mas suas vozes e imagens… ficaram gravadas na minha memória como se fossem parte do meu próprio corpo.
Muna estremeceu baixinho, levou a mão à boca e murmurou:
— Eles estavam bem…?
Numan balançou a cabeça em negativa, como se pedisse desculpas por aquela pergunta inocente, e continuou, com voz calma e carregada de detalhes:
— Cada um estava sentado dentro do porta-malas de um carro, com as pernas erguidas quase em ângulo reto e as mãos amarradas atrás das costas.
Ao lado de cada um, dois carcereiros seguravam grossos chicotes de couro e desferiam golpes violentos nos pés, com precisão irrelevante: ora acertavam a cabeça, ora o ombro, o rosto… pouco importava. O essencial era que o espetáculo continuasse.
O pai baixou a cabeça desta vez, passando a mão pela testa, como se tentasse afastar uma imagem que não queria ver.
Numan continuou:
— No canto da sala havia uma pequena mesa, com papel e caneta. Eram apresentados quando a resistência enfraquecia e o prisioneiro estava pronto para assinar — não suas próprias palavras, mas confissões já redigidas, sem que ele pudesse ler.
— E se ele se recusasse a assinar? — perguntou Muna , a voz trêmula.
— Então era apenas mais uma oportunidade para o carcereiro exercitar os músculos sobre ele.
Os olhos de Muna se encheram de lágrimas; ela ergueu o rosto para o teto, como se tentasse esvaziar o coração da angústia, e murmurou:
— Meu Deus… e como você conseguiu se manter no meio de tudo isso?
Numan a fitou longamente e sussurrou:
— Como alguém sobre um palco, e a plateia não aplaude… apenas espera pela queda.
Houve uma pausa, e então continuou:
— Fui então levado ao mesmo escritório do investigador, mas ele parecia diferente. Duas pequenas mesas em cada extremidade da sala, cada uma com outro prisioneiro, o rosto voltado para o papel e a caneta, a mão estendida sobre a mesa esperando ou escrever ou receber uma chicotada.
— As chicotadas eram tão fortes que um deles gritou como se estivesse perdendo a mão.
A voz de Numan tornou-se mais firme:
— Quando o chicote não bastava, um carcereiro segurava um alicate afiado e arrancava as unhas de cada prisioneiro, uma por uma. Lentamente, com um prazer silencioso, como se fosse um ritual sagrado.
Muna engoliu em seco, quase sem respirar:
— Você… você viu isso mesmo?
— Vi, assim como te vejo agora… — respondeu Numan . — A luz era fraca, desenhada para confundir, para que não se distinguisse a verdade da ilusão. À esquerda do investigador, um guarda de feições rígidas observava cada detalhe sem piscar, como se fosse parte da parede.
Houve uma pausa. Então ele sussurrou, quase para si mesmo:
— Avancei com cuidado, e tudo em mim pulsava num ritmo frenético: meu coração, minha respiração, meus olhos… até minha alma tropeçava.
O pai de Muna perguntou, com preocupação evidente:
— E o investigador? O que ele disse a você?
Numan olhou para ele, com uma voz carregada de sarcasmo e amargura:
— O investigador disse:
“Estes dois são dos prisioneiros, e o terceiro e o quarto você encontrou no caminho para cá, não foi? Todos eles você disse não conhecer…”
E aquilo foi apenas o começo.
Após um momento de silêncio tenso, Numan continuou sua narrativa, como se tentasse arrancar de sua memória uma brasa que sabia que não se apagaria se falada, nem se aquietaria se silenciada. Sua voz era calma, mas os olhos… falavam mais do que escondiam.
— Eu não respondi. Não consegui distinguir os rostos naquela luz fraca, mas os corpos trêmulos, as costas curvadas, e aquelas mãos que tremiam como se ameaçassem a caneta, não para escrever, mas para aliviar uma dor ainda maior… tudo isso não me era familiar… e, mesmo assim, doía como se me pertencesse.
O pai de Muna sussurrou, franzindo a testa e apertando o braço da cadeira:
— Que mundo é este? A injustiça veste a máscara da justiça e fala a língua da lei!
Muna quis comentar, interromper, dizer algo… mas se conteve. Limitou-se a olhar Numan com olhos brilhando, suplicantes:
— Continue… não pare.
Numan prosseguiu, a voz baixando, como se caminhasse por um corredor estreito de lembranças:
— O investigador comentou, sem emoção, lançando um olhar lateral a um dos detidos “domados”, como dizem:
— Pedi que escrevessem tudo o que sabiam. Eles confessaram voluntariamente sua filiação a um partido político proibido e disseram que você estava com eles. Sem pressão, sem ameaças… apenas queriam que a verdade fosse dita.
O pai de Muna balançou a cabeça em desespero, murmurando para ela com voz triste:
— Talvez seja apenas representação… viu como a injustiça se constrói com mãos frias?
Embora suas palavras fossem dirigidas a Muna , atingiram Numan como uma flecha. Ele permaneceu em silêncio, apenas continuou, a voz carregada de lágrimas contidas:
— Quis dizer: “Por que não os enfrento? Não é intenção revelar a verdade?” Mas calei-me. Naquele lugar, até as perguntas se transformam em acusações adicionadas ao seu dossiê.
Então Numan começou a imitar a voz do investigador, com precisão cortante:
— Não permitimos que ninguém visse o outro, nem que visse você, para que ninguém pudesse dizer depois que alguém se deixou influenciar pela sua presença ou recebeu algum sinal seu. Ou que você tivesse sido influenciado por eles.
Houve uma pausa, depois continuou com um tom suave, como um sorriso encharcado de veneno:
— Agora eles escrevem… cada um com seu depoimento. A consciência é a única testemunha.
Numan balançou a cabeça lentamente, falando mais para si mesmo do que para eles:
— Olhei para as duas folhas, para os guardas, para toda a cena… senti que a verdade havia sido despida de sua carne e transformada numa imagem impressa no papel.
E, baixinho, com calma que escondia uma raiva pura, murmurou:
— Isto não é verdade… é encenação. Vocês não buscam a luz; vocês criam uma sombra e convencem os outros de que é luz.
O investigador riu, uma risada vazia, sem cor, ecoando um vazio profundo:
— Talvez alguém esteja escrevendo agora algo que te incrimine mais do que você já disse antes. E talvez outro traga um final inesperado.
Olhei para os detidos, para seus dedos começando a se mover, e disse com serenidade:
— Não conheço nenhum deles. Não tenho vínculo com eles.
O investigador ergueu uma sobrancelha e perguntou com uma voz suave que escondia a lâmina da intenção:
— E quanto à filiação de todos vocês a um partido político proibido?
Respondi:
— Agora devo admitir minha filiação a um partido proibido? Que pratiquei atos contra a segurança do Estado? E se o fizer, vocês me libertarão, e a eles?
Ele me fitou longamente, e disse, quase como quem negocia:
— Não queremos mais do que a confissão da sua filiação e que participou de um protesto. Isso é tudo. Prometo que logo estará de volta em casa.
E eu disse, com firmeza, descobrindo em mim uma força que nem sabia existir:
— Escreva o que quiser, se assim for, e eu assinarei.
Apontou para o guarda:
— Traga-lhe papel e caneta, leve-o à sala ao lado. Que escreva tudo o que sabe, e quando terminar, devolva-o à cela e traga o papel para nós. Quanto aos outros dois, de volta às celas imediatamente.
A voz de Numan hesitou por um momento, e então ele disse, como se retornasse com passos lentos àquela sala que jamais abandonou sua memória:
— Na sala ao lado, sentei-me diante da mesa de madeira, o guarda parado como estátua junto à porta. As folhas estavam diante de mim, a caneta… e eu comecei.
— Não escrevi o que eles queriam. Escrevi o que deveria ser dito no dia em que falar era seguro.
Comecei a organizar minha memória como um prisioneiro organiza seus passos na cela estreita: devagar… com cuidado.
O pai de Muna inclinou-se para frente, entrelaçou os dedos sobre os joelhos e perguntou baixinho, como quem teme estragar algo:
— E o que escreveu primeiro?
Numan respondeu:
— Comecei no momento em que percebi que tinha uma mente que pensava, não apenas um corpo que obedecia. Escrevi sobre o choque do primeiro livro político que peguei numa estante empoeirada de uma pequena biblioteca, onde ninguém ousava perguntar ao dono o que vendia. Escrevi sobre as palestras que frequentei nos centros culturais e bibliotecas públicas, sobre professores cujas vozes soavam mais como profecias do que como explicações. Sobre os pequenos momentos que me moldaram.
Na sala ao lado, sentei-me diante da mesa, que senti ser minha, com o papel e a caneta à minha frente. Comecei a escrever… não uma confissão, mas minha memória. Anotei tudo que havia lido sobre política, especialmente o que se relacionava com o pensamento islâmico, deixando de lado outros conhecimentos. Listei os livros, seus autores, de onde os adquiri, os nomes das bibliotecas, as palestras e minhas intervenções nelas.
Muna, nervosa, murmurou:
— Parece que você está escrevendo seu diário de vida para eles, Numan !
Ele sorriu levemente:
— É apenas um lado dela. Um testemunho. Um testemunho de consciência, não de crime. Escrevia, revivia tudo dentro de mim, e cada linha, cada parágrafo, tinha sua singularidade.
Após um gole de água, continuou:
— Escrevia como se ninguém mais fosse ler. Mas, no fundo, apostava em outra coisa.
O Sr. Ahmed perguntou:
— Em quê apostava, meu filho?
Numan , olhando para o vazio, respondeu:
— Apostava que quem lesse, qualquer que fosse, não compreenderia. E quando acabavam as folhas… pedia mais. Quando a tinta secava, pedia outra. Eu prolongava a escrita… não para fugir, mas para resistir. Embora não tivesse certeza de nada, naquele momento sabia com clareza que alguém acabaria lendo. Mas havia uma certeza: aquilo havia saído do meu corpo, guardado em alguma gaveta, mas não queimava mais dentro de mim.
O pai de Muna suspirou, com uma ternura contida:
— Esse tipo de luta… não se ensina.
Numan prosseguiu:
— No dia seguinte, à tarde, terminei. Numerei as folhas e entreguei ao guarda. Não sabia mais quem observava quem, quem escrevia a verdade, quem interpretava a sinceridade. Mas sabia de uma coisa:
— Se a vida de alguém tivesse de parar por isso, eu não seria a causa.
— Não contava as noites, contava o silêncio entre sessões, o tremor entre passos. Aquela noite… tinha algo diferente. O gosto do fim, ou o cheiro de começos criados a partir de arrependimentos que não se revelam.
— O ar na cela estava mais frio que o normal, como se as paredes finalmente respirassem após tanto sufoco, exalando o fôlego de todos que passaram antes de mim, um por um, inclusive eu.
Numan disse isso, e Muna suspirou lentamente, como se respirasse com ele o mesmo frio, sussurrando:
— É como se a cela engolisse a memória e cuspisse almas suspensas…
O pai assentiu com a cabeça, em silêncio.
Numan continuou:
— O ar na cela parecia mais frio, não pelo clima, mas como se as paredes finalmente respirassem, exalando o sopro de todos que passaram antes de mim. Eu estava no chão, não deitado nem sentado, mas suspenso entre os dois, como se meu corpo fosse uma pergunta sem resposta.
Quando me devolveram à cela, eu não era mais eu.
Havia dentro de mim outra pessoa, parecida no nome e nas feições, mas que havia perdido algo irreparável.
A porta se fechou atrás de mim com um som metálico, como se fosse um selo em uma página que não deveria ser aberta.
Sentei-me no meu canto habitual, não olhando para a parede, mas vendo-a… como um espelho que me expunha.
Sussurrei para mim mesmo, num tom que só eu podia ouvir:
“Será que você acreditou neles? Ou só tenta não quebrar?
Está enganando-os quando fica em silêncio, ou enganando a si mesmo?
Esperava que alguém sobrevivesse? Que alguém escrevesse uma palavra que te absolvesse?
Que ingenuidade, Numan !”
Na sala silenciosa, Muna franziu as sobrancelhas com tristeza contida, e seu pai murmurou, como se comentasse uma lembrança sem origem:
— Ele está julgando a si mesmo agora… e isso é mais duro do que qualquer interrogatório.
Muna baixou o olhar e disse:
— Sim… ele não suporta a injustiça, mas também não perdoa a si mesmo se acha que falhou por um instante.
Numan continuou em sua cela, como se escrevesse nas paredes com sua voz:
— Aqueles que estavam lá escrevem… não para revelar a verdade, mas para enterrá-la.
Será possível que um ser humano, em um momento de medo, seja capaz de trair a própria alma?
Ou o medo não cria a traição, apenas a revela?
Eu os via curvados sobre o papel, não para escrever, mas descendo do teto baixo da tortura para um abismo ainda mais profundo.
Muna perguntou, com voz suave, porém carregada:
— Ele tinha medo deles… ou de si mesmo?
O pai dela, olhando fixamente para um ponto imaginário no chão, respondeu:
— O medo dos outros é passageiro… mas o medo de si mesmo é a verdadeira prisão.
A voz de Numan ecoava do fundo da memória, de uma cela estreita que parecia alojar-se dentro do seu próprio peito:
— Como fui ingênuo ao acreditar que o papel me faria justiça, que a caneta seria justa se deixada nas mãos de quem só sabe escrever o que lhe é ditado.
Onde está a verdade?
Nos papéis manchados de medo?
Ou no olhar de um detido que eu pensava não conhecer e que, de repente, parecia mais parecido comigo do que qualquer outra pessoa?
Muna desviou o olhar, como se enxergasse a cela na sua imaginação, e disse num tom em que a perplexidade se misturava à dor:
— É como se ele tentasse encontrar a si mesmo entre os escombros dos rostos.
O pai inclinou a cabeça lentamente:
— Ele não procura inocência… procura sentido.
Numan prosseguiu:
— Bateram à porta, não com violência como antes, mas como se quem batia pedisse licença.
Abri os olhos. Era o mesmo guarda, mas os seus passos vinham mais lentos e o seu olhar lutava para não encontrar o meu.
Fez um gesto. Levantei-me sem perguntar — já aprendera que, ali, perguntas não são respondidas, são punidas.
Muna murmurou, apertando a mão do pai:
— Parece que estamos a chegar a algo… algo diferente de tudo até agora.
O pai acenou com a cabeça, como quem não quer antecipar o desfecho:
— Deixa-o continuar, Muna… o silêncio agora diz mais do que qualquer previsão.
Seguimos, o guarda e eu, pelo mesmo corredor. Nada mudara: nem a umidade, nem o cheiro de metal, nem o zumbido do silêncio. Só nós é que mudávamos.
Mas ele não me levou ao gabinete do investigador. Levou-me ao terraço. Ali não havia paredes altas, nem teto — apenas uma cadeira de ferro sem encosto, fios pendendo do alto, e o vento a gemer nos cantos de cimento.
Fiquei parado no meio, enquanto o guarda recuava até ao muro e se transformava numa estátua imóvel.
E então ele veio. O investigador.
Mas não vinha sozinho… trazia um copo de café do qual subia um vapor leve. Sorria um sorriso ensaiado, como um truque repetido.
Falou com uma voz que parecia falar-me fora do tempo:
— Gosta do sol, Numan ?
Olhei para ele sem responder. O sol caía devagar, arrastando o seu véu com vergonha, e as sombras rastejavam como criaturas noturnas à procura de uma história.
Ele repetiu, agora com um sorriso um pouco menos firme:
— Sabe? Este terraço já viu muitas conversas. O ar amolece a cabeça… e abre os corações.
Continuei calado.
Aproximou-se e puxou a cadeira:
— Sente-se. Hoje não quero nada. Só… conversar como amigos.
Sentei-me. Não por confiança, mas por uma curiosidade vigiada pelo medo.
Ele olhou o horizonte e disse:
— Viu algum dos seus colegas aqui?
Respondi:
— Não.
Ele abanou a cabeça, como quem confirma uma suspeita:
— Nem eu. Alguns… não sei se ainda estão entre nós. No fim, ninguém fica, Numan .
Fez uma pausa, depois acrescentou:
— Tudo passa… a dor, os amigos, a verdade. Só a convicção fica. Se sobrevivermos.
Olhei-o em silêncio, mas o meu coração despedaçava-se na sombra.
Ele inclinou-se para mim, num tom quase confidente:
— Você é jovem, inteligente. Não é nosso inimigo. Mas a sua teimosia faz parecer que é… Pense bem.
Ele recuou alguns passos, como quem deseja deixar-me a sós com os meus próprios fantasmas. Voltou-se ligeiramente e disse, de costas:
— Volto daqui a pouco.
O pai de Muna trocou um olhar com a filha; a preocupação estava gravada nas feições de ambos. Murmurou, num tom que mais parecia um pensamento dito em voz alta:
— Eles não concedem trégua… senão para semear algo pior.
Mas Numan ainda não tinha terminado a sua história.
Muna falou, com a voz embargada:
— É como se lhe oferecessem um vislumbre de liberdade… mas com joelhos dobrados.
O pai respondeu devagar:
— Ou querem ver se o desespero o fará ceder.
Numan continuou:
— Voltou passados alguns minutos. Aproximou-se e sussurrou-me ao ouvido: “Atenção, Numan . E que isto fique só entre nós. Durante os próximos seis meses, os serviços de segurança vão seguir-te para onde fores, onde quer que estejas. Vão anotar tudo: com quem falas, o que dizes, cada passo. Mas não tenhas medo, não olhes para trás, não hesites. Pergunta apenas o que for indispensável para os teus estudos. Serás convocado mensalmente, durante dois anos, para o departamento de segurança política. Não faltes. Não tenhas medo. Depois, se os relatórios forem bons, cada seis meses.
E para ti, só para ti, uma boa nova: em dois dias, talvez menos, tudo estará concluído… e voltarás para os braços da tua mãe.”
A frase atravessou o muro da dor. O meu coração estremeceu sem que eu pudesse evitar.
Muna levou as mãos ao rosto para esconder uma lágrima que lhe fugiu. Sussurrou, quase inaudível:
— É uma prova… uma prova que não se parece com nenhum exame da vida.
O pai continuou a fixar o vazio, depois disse:
— Eles não devolvem os presos… devolvem-nos carregados de expectativa, amarrados a um fio invisível.
Numan prosseguiu:
— O seu sussurro não era consolo. Era o anúncio de uma nova prisão… ao ar livre. Depois fez sinal ao guarda, que me conduziu, não de volta à cela, mas a um quarto vazio. Um catre de ferro, uma janela estreita abrindo-se para um pátio exíguo, um muro, e depois apenas uma faixa de céu.
Deitei-me. Fechei os olhos lentamente e murmurei para mim mesmo: “Isto não é generosidade… é outro teste. E quem disse que a noite não esconde mais do que revela?”
Repeti mentalmente as palavras do investigador, com uma frieza que não combinava com promessas de libertação: “Mais uns dias e sais.” Falava como quem anuncia a mudança do tempo… não a abertura de um inferno fechado há demasiado tempo.
Dias?
Só alguns dias, e o céu abrir-se-ia?
Será possível voltar a ser um homem com sombra para lá destas paredes?
Mas por que não lhe respondi? E com que palavras poderia responder?
Acreditar? E por que não acreditar?
Algo dentro de mim estremeceu — algo que se parecia à mão da minha mãe quando me puxava o cobertor de manhã, dizendo:
«Acorda… não te esqueças de sonhar.»
Quando a porta se fechou atrás dele, encostei a cabeça ao muro e fechei os olhos.
E vi-a.
A minha mãe.
Sentada na sala, na mesma cadeira de madeira onde tantas vezes costurou os meus pequenos ferimentos. Entre as mãos segurava um bordado de cores suaves, dobrando-o devagar, como quem prepara uma alegria ainda por vir.
A luz entrava pela janela como se soubesse, e o ar tinha perfume de jasmim fresco.
De repente, ela ergueu-se, escutando… passos familiares aproximavam-se da porta.
Avançou hesitante, abriu-a devagar. Por um instante ficou imóvel.
Olhou-me longamente, sem acreditar.
Depois correu, correu, correu.
Abraçou-me, murmurando ao meu ouvido:
— Voltaste? Eu sabia… sabia que havias de voltar.
Chorei no seu regaço, não por fraqueza, mas porque finalmente chegara — chegara ao ponto onde a alma repousa, ainda que por instantes.
Mas um som áspero bateu à porta por dentro.
O sonho partiu-se.
O seu rosto dissipou-se na escuridão.
E voltei à cela, à humidade, ao meu nome que escrevia com cinza colhida do chão, transformada em giz, repetindo no silêncio o eco da sua voz:
— Numan … ele há de voltar.
Continuava Numan na minha nova cela, mas o meu coração já corria à frente do corpo para casa. Imaginava, momento a momento, o primeiro dia depois da libertação, como se o vivesse para não o perder, se viesse.
Nessa noite, depois de o guarda ter saído arrastando a sombra pesada, voltei ao meu sonho.
Imaginei a primeira manhã em casa:
acordar ao som da chave na porta, não ao das correntes no corredor;
sentir o aroma do café, não a humidade das paredes;
ver o rosto da minha mãe enchendo o horizonte, avançando, estendendo os braços,
retirando de mim a manta do prisioneiro e dizendo com voz de oração:
— Graças a Deus, vejo-te finalmente a dormir na tua própria cama.
Sento-me na beira, olho à volta:
as paredes limpas, sem pegadas;
a janela aberta;
e um pequeno pássaro a cantar, como se me esperasse para me dizer que o mundo ainda está aqui.
Na cozinha, a minha mãe preparava um pequeno-almoço simples: azeite, ovos estrelados como eu sempre gostei, e um pão quente acabado de sair do forno. Chamou-me batendo levemente na mesa, a voz baixa mas firme:
— Vem comer. Hoje não penses em nada. Nada além disto: estás aqui… e estás bem.
Sentei-me à sua frente e fiquei a olhar para o rosto dela, um rosto que me faltara por mil anos nos dias que passei lá dentro. Todos os traços estavam ali, todas as palavras me envolviam de novo. Os olhos dela percorriam os pormenores da minha face, como se confirmassem que eu ainda era eu. Eu, que conhecia esse rosto melhor do que o meu próprio nome, via-o agora como se fosse a primeira vez, como se tivesse acabado de nascer do ventre da ausência para o colo da vida.
Perguntei, num sussurro:
— Mãe… esperaste por mim todo este tempo?
Ela sorriu, inclinando a cabeça, e disse:
— O coração de uma mãe dorme enquanto o filho está na escuridão?
Serviu-me um copo de chá, mas as mãos tremiam. Escondeu as lágrimas desviando o olhar para a colher:
— Todos os dias arrumava o teu quarto como se fosses entrar nessa noite. Apagava a luz e dizia: “Se ele voltar, que encontre tudo como deixou.”
Eu queria dizer-lhe que morri mil vezes lá dentro. Mas voltei… para viver nela.
Ela serviu-me o pequeno-almoço. Deu-me de comer com as próprias mãos. Quando terminámos, ficámos ali, juntos, a beber chá em silêncio quente, como se tivéssemos medo de estragar o instante com palavras.
Estendeu a mão ao meu rosto, passou a palma pela minha face e murmurou:
— Cresceste tanto, Naaman… mas os teus olhos ainda são os do meu menino.
Fitei-a longamente, sem responder. As palavras pareceriam mais fracas do que este momento.
Ela levantou-se devagar:
— Vai, respira um pouco lá fora. O bairro… as pessoas esperam por ti.
Saí hesitante, como se o ar lá fora fosse estranho para mim. A primeira coisa que fiz foi levantar o rosto ao céu. Um fôlego longo, sem bofetadas nem ordens de silêncio.
A rua era estreita como antes, mas parecia mais larga do que aquele corredor comprido do cativeiro. As portas as mesmas, as janelas as mesmas, mas os olhos que espreitavam já não eram iguais.
Dei alguns passos, quando ouvi atrás de mim:
— Naaman?! És tu?!
Virei-me. Era o senhor Hussein, o dono da mercearia, parado à porta como quem vê alguém regressado do esquecimento.
Ele aproxima-se com passos hesitantes e, de repente, abraça-me com força:
— Graças a Deus… vivo! Vivo, minha gente!
E o grito espalha-se como água:
— Naaman voltou!
— O filho do bairro voltou!
— Voltou do longo desaparecimento!
Crianças correm à minha volta, mulheres inclinam-se das varandas, homens avançam para me apertar a mão com uma delicadeza estranha, como se tivessem medo de me magoar ou de acreditar de verdade.
Um deles murmura ao meu ouvido:
— Parece um sonho, irmão… é como se tivesses saído de um túmulo, não de uma cela.
Caminho pelo bairro como quem regressa a si mesmo, ao barro que moldou o coração. Cada pedra do passeio reconheço, cada sombra nas paredes me falava nas noites distantes.
Chego à esquina, junto ao muro inclinado onde jogávamos em crianças. Fico ali parado. E choro pela primeira vez. Não de dor, mas de plenitude.
Volto para casa ao entardecer. A minha mãe abre a porta antes que eu bata.
— Eu sabia, disse ela abrindo os braços, eu sabia que voltavas antes que o chá arrefecesse.
Entro no meu quarto antigo, onde a memória começa a tecer de novo os seus fios, onde regressa o menino que deixei ali anos atrás. Entro como quem pisa uma casa habitada um dia num sonho antigo.
Estava tudo como deixei — ou como a minha mãe quis que ficasse.
Os livros na prateleira, algumas folhas antigas arrumadas com cuidado numa pequena caixa de madeira. Até o meu casaco, pendurado no prego atrás da porta, ainda lá estava, um pouco empoeirado agora, como se tivesse envelhecido comigo.
Aproximo-me da cama, ajoelho-me e coloco a mão sobre a colcha simples que a minha mãe cosera com as próprias mãos. Trazia o cheiro da casa, o cheiro do amor silencioso que não se ergue em vozes, mas vive nos pequenos detalhes.
Na parede, ainda pendurado, o desenho que fiz quando era criança: o meu rosto em cores desalinhadas e, por baixo, a frase:
“Mãe… nada vale mais do que a minha mãe!”
Chorei quando o desenhei… e choro agora.
Sento-me à beira da cama, como se escutasse algo que não pode ser dito.
O silêncio no quarto não era silêncio; era um longo diálogo com coisas que me conheciam na solidão e me esperavam sem impaciência.
Ouço uma batida suave na porta. Minha mãe entra, trazendo nas mãos um copo de leite quente, como costumava fazer nas noites frias, quando eu me demorava lendo meus livros.
— Sei que gostas de beber antes de dormir — diz, colocando o copo diante de mim.
Ela senta-se ao meu lado e, com voz baixa, como quem teme acordar uma ferida:
— Pois bem… acabou tudo agora, não é?
Olho para ela e vejo em seus olhos uma hesitação, como se não pudesse acreditar que a longa noite terminou de fato.
Segurando sua mão, digo:
— Acabou, mãe… mas eu ainda estou dentro dela.
Ela me envolve como fazia quando eu voltava cansado da escola ou do trabalho, dizendo:
— Não ficarás preso, vou te restaurar aos poucos… e lavaremos de ti a noite com copos de manhã boa.
Naquela noite, sonhei que dormia em minha velha cama, sentindo-me uma criança que retorna de um longo túnel de pesadelos, finalmente adormecendo no colo da paz.
Na solidão da cela, a infância começa a se infiltrar pelas fissuras, trazendo consigo o sorriso de minha mãe, uma mão pequena segurando a minha em direção ao grande portão… A luz era fraca, quase insuficiente para formar sombras, mas suficiente para criar um sonho.
Fecho os olhos e me vejo parado diante da porta da escola.
Um menino de oito anos, no segundo dia de aula, segurando uma pequena mochila, com um fio de medo pendendo de seus olhos como uma lágrima perdida.
Ao seu lado, a mãe segura firmemente sua mão, como se entregasse o mundo inteiro de uma só vez.
— Seja corajoso, meu querido… a escola é tua nova casa — diz, ajeitando a gola da camisa.
Ele não compreendia o significado de “nova casa”, mas sentiu que todos os pássaros que pousavam em sua janela na vila haviam vindo hoje para acompanhá-lo.
O professor, de barba rala, que o levara ontem à sala de aula, chama com voz grave:
— Tu… Naaman… vem, filho, vamos começar a lição.
Ele entra na sala, caminha com passos pequenos e senta-se no banco de madeira. Sua textura era áspera, mas para ele parecia uma plataforma elevada.
O professor abre o livro e diz:
— Hoje vamos escrever a primeira palavra.
Entrega-lhe um giz e aponta para o quadro.
Naaman se levantou, aproximou-se dela, estendeu a mão e escreveu: “MAMÃE”.
Despertou na cela ao murmúrio do guarda atrás da porta.
Mas não deixou o sorriso escapar de seus lábios.
Pensou consigo mesmo: “Talvez eu a escreva de novo quando sair… mas desta vez, não será no quadro, será nas paredes do mundo.”
Ela se levantou, aproximou-se da parede e, com o dedo, traçou a mesma palavra na fria superfície: “MAMÃE”.
E a letra sorriu — e ela sorriu junto.
E bastava que a letra brilhasse
para que sua mãe se materializasse diante dele,
iluminada por aquele traço simples.
× CELA DO SHEIKH HASSAN ×
Capítulo Trinta 30:
Era uma tarde quente de outono, daquelas que antecipam o frio das noites seguintes, quando o pequeno grupo se reuniu na sala de estar da casa do senhor Ahmed.
Sentámo-nos em círculo, sob a luz tênue de um abajur colocado sobre uma mesa de nogueira envelhecida.
Muna folheava um pequeno livro que ainda não tinha terminado de ler, enquanto seu pai se acomodava na poltrona pesada, percorrendo as manchetes do jornal sem se deter nelas.
De repente, Muna ergueu os olhos, como se lembrasse de uma pergunta que ficou guardada, e perguntou em voz baixa, mas carregada de desejo de saber:
— Naaman… quando você saiu da prisão? E como foi?
Ele ficou em silêncio por um instante, olhou para o pai dela e respondeu, com voz firme, mas baixa:
— Saí numa quarta-feira, dia dezesseis de novembro de mil novecentos e setenta e quatro… era o trigésimo do Ramadã, próximo do Eid. Um dia que jamais esquecerei, quase como uma fronteira entre uma vida de portas fechadas sobre mim e outra que se abriu… embora não completamente.
Muna ergueu levemente as sobrancelhas, surpresa, e disse com uma ponta de emoção:
— Perto do Eid?! Meu Deus… e como foi a saída?
— Apresentei-me ao juiz de primeira instância no Palácio da Justiça em Damasco. Depois de ler o meu processo, ele olhou para mim por um longo instante e disse, com seriedade gelada: “Não quero ver você aqui de novo”. Em seguida, estendeu-me minha carteira de identidade… e me liberou.
O senhor Ahmed baixou o olhar, visivelmente perdido em lembranças, e perguntou com cuidado:
— E isso foi tudo?
Naaman respirou fundo, como se revivesse cada minuto, e respondeu:
— Não… o juiz ainda disse: “Antes de chegar em casa, você deve se apresentar à filial do partido em sua cidade e solicitar a filiação se quiser garantir seu futuro.”
Muna exalou um leve suspiro, quase um sussurro:
— E… você fez?
Ele sorriu fracamente e continuou:
— Estava no hall do tribunal, e meu avô estava esperando por mim, como se tivesse adiantado-se ao conhecimento do meu destino. Não soltou minha mão e me conduziu pelas ruas de Damasco como quem acompanha uma criança na tempestade. Pagou a passagem do ônibus, e minha mão permaneceu segura até descermos. Chegamos à loja do meu pai… e todos me receberam com uma alegria indescritível.
Muna fechou os olhos por um momento, tentando imaginar a cena, e perguntou:
— E sua mãe? Como foi o encontro?
Ele baixou a voz, recuperando o tremor da memória:
— Ela me esperava à porta, e quando me viu, avançou sobre mim como um rio rompendo as barreiras da compostura. Abraçou-me, colocou meu rosto nas suas mãos e seus olhos me banharam de saudade e oração…
…abraçou-me, e chorou. Chorava como se quisesse se assegurar de que o sonho havia voltado.
— Saí do Palácio da Justiça em Damasco com a respiração hesitante, como se pedisse permissão para voltar a existir. O ar parecia pesado, não pelo calor, mas por carregar a lembrança de dias que não se pareciam com nenhum outro.
No hall de espera, entre rostos apagados, avistei-o… meu avô.
Estava diante da porta, firme como uma montanha paciente, apoiado numa bengala discreta de oração, e seus olhos me precediam, recebendo-me antes mesmo de eu chegar.
Avancei com passos hesitantes, e meu eco percorria o espaço como se ainda não acreditasse que havia sobrevivido.
Minutos antes, eu estava diante do juiz de primeira instância em Damasco. Um homem de cerca de cinquenta anos, sem rigidez nem sorriso, olhando para mim como se visse um espectro retornando de um destino perdido.
Ele pediu que me aproximasse da mesa e disse:
— Não quero ver você aqui de novo.
Então estendeu a mão, e nela segurava minha identidade, entre o polegar e o indicador, como quem devolve o fôlego a alguém que sufocou.
Devolveu-me o documento com cuidado, falando de frente para mim, como se primeiro ouvisse a própria voz antes de me falar:
— Antes de chegar em casa, você deve se apresentar à filial do partido em sua cidade e solicitar a filiação ao Partido Baath Árabe Socialista.
Houve um silêncio, e então acrescentou com voz calma, porém carregada de significado, oscilando entre repreensão e alerta. Seus olhos percorriam a pequena sala de audiências, vazia exceto por nós dois, e fixavam firmemente a porta atrás de mim:
— Se quiser garantir sua vida… e seu futuro nos estudos, na profissão e na sociedade… há apenas um caminho, meu filho.
Sua voz caiu sobre mim como pedra no fundo de um poço. Respondi com um olhar silencioso, nem aceitação nem rejeição… apenas o silêncio de quem sabe que ainda está no olho da tempestade, e que sobreviver não significa liberdade, mas apenas uma breve trégua.
Meu avô segurou minha mão como se segurasse um sonho há muito esperado, ou um medo que não podia se perder.
Não precisou falar; sua mão, firme na minha, dizia tudo.
Ele não soltou minha mão durante todo o caminho, como se temesse que eu desaparecesse de repente, como desaparecem os sonhos ao amanhecer.
Enquanto tentava me convencer de que não estava mais na prisão, chegamos à cidade, e ele me conduziu à loja de meu pai no mercado.
O lugar estava cheio de clientes, homens aguardando a vez para cortar o cabelo de Eid, e meu pai, atrás da cadeira, concentrado com a tesoura, virou-se… e me viu.
Parou por um instante, sorriu como nunca antes, largou a tesoura e correu até mim, me abraçando como nunca me abraçou antes, pedindo desculpas aos clientes, com a voz embargada:
— Desculpem… nosso Eid começou hoje.
Meu avô nos acompanhou até sua casa próxima, e lá, na porta… minha mãe esperava, e o coração dela parecia precedê-la em cada passo.
Ao me ver, sua voz se elevou em um lamento… não um choro comum, mas um som que brotava de suas entranhas como o chamado para a oração em uma noite chuvosa; um chamado que abria as portas do coração e regava a memória.
Ela me abraçou, segurou meu rosto entre as mãos como se quisesse garantir que eu realmente voltara, que não havia me perdido por completo… e seus olhos choviam saudade e preces, lavando o medo antigo que ainda carregava.
De repente, os gritos de alegria das mulheres ecoaram pela casa do meu avô, como sinos de salvação que repercutiam em todo o bairro. Minhas tias correram da cozinha, deixando o que tinham nas mãos — comida, pão, preparativos — e repetiam os ululatos enquanto minha mãe me segurava, dizendo:
— Voltou… voltou, Naaman, voltou de verdade!
A casa do meu avô não era grande o suficiente para conter tanta felicidade. O som se espalhou pelas ruas, subiu com o cheiro de fumaça aromática e circulou pelas portas, pedindo licença: “Vizinhos, Naaman voltou!”
As mãos preparavam as mesas do café da manhã, os corações rezavam em alegria, e eu… eu tentava acreditar que realmente estava de volta, embora sentisse que ainda carregava fragmentos de correntes invisíveis.
Antes do chamado do Maghrib e de nos sentarmos à mesa, lembrei-me das palavras do juiz — o que ele disse, e o que não disse — aquelas que estavam em sua entonação, em seu olhar, na maneira como segurou minha identidade.
Olhei para meu pai e disse, com a voz quase pedindo permissão para transitar da alegria para a obrigação:
— Pai… o juiz me ordenou que me apresentasse à filial do partido em Douma antes de voltar para casa.
Ele não falou. Apenas segurou minha mão, como fizera meu avô, e caminhamos juntos. O caminho não era longo, e nós o conhecíamos bem; a filial ficava perto da casa do meu avô.
Mas, quando chegamos, encontramos as portas fechadas e o lugar vazio.
Um vizinho se aproximou, sorrindo, e disse:
— O Eid é amanhã, Abu Naaman… a filial está fechada. Eles voltarão depois do feriado.
Olhei para meu pai, que suspirou, e disse com um tom que misturava cautela e resignação:
— Para tudo há tempo… e hoje, meu filho, é o teu dia. Vamos, vamos nos apressar para voltar; restam apenas alguns minutos antes do Maghrib.
Ainda sentia como se não tivesse saído completamente da prisão… mas já não estava mais nela.
Depois do café da manhã, enquanto os cantos do muezzin subiam no horizonte como se pendurassem uma nova estrela no céu do Eid, meu pai pediu licença para voltar à sua loja. Os clientes, vizinhos e alguns amigos ainda não haviam saído, cada um aguardando seu turno, como nos velhos dias de histórias, cortes de cabelo e chá durante o Ramadan e o Eid.
Eu não sabia ainda que a loja tinha outro coração… um coração que pulsava pela vida dos outros, um coração figurado, e era aquele pequeno restaurante que pertencia ao amigo do meu pai, Abu Rasheed al-Jouban, chamado de “o Ministro”, não por poder, mas por seu senso artístico de organizar pratos e decorar mesas.
Abu Rasheed — com sua barba rala e voz grave — preparava a mesa do café da manhã como se fosse uma obra-prima, colocando-a na loja do meu pai, para que todos que ali estivessem pudessem comer, sem perder seu papel, nem seu lugar nas histórias e na presença.
Xícaras de chá? Ah… essa é outra história.
O chá do meu pai, sempre o mesmo, era preparado com uma lentidão que lembrava um ritual de amor. O fogo tremeluzia tranquilo, a água era derramada em ângulos precisos, e as folhas de chá mergulhavam no momento exato, como se fosse uma espécie de encantamento. Quem bebia daquele chá dizia, com reverência quase religiosa:
— Por mais chá que se tome, nenhum se compara ao que o pai de Naaman prepara.
Era uma frase que todos repetiam como um consenso imutável, e junto dela elogiavam os pratos de Abu Rasheed, sua disposição, a harmonia dos ingredientes: queijo branco, compotas, tâmaras, azeitonas, fatias de ovo, pães torrados polvilhados com tomilho; e os pratos de homus e feijão, às vezes isolados, às vezes combinados, compondo uma coreografia perfeita.
A loja do meu pai durante o Ramadã era assim: um círculo de afeto, uma mesa de generosidade, um salão de histórias… e todos aguardavam o próximo mês sagrado para comprovar que repetir a história tinha o mesmo sabor da primeira vez.
Com todo cuidado, pedi licença para voltar para casa, ansiando pelo abraço íntimo do meu quarto — pelo encontro silencioso com a água, com a roupa limpa, com a cama que parecia feita de ternura. Cada célula do meu corpo clamava: sono… sono profundo, como se quisesse apagar os últimos tremores que ainda restavam dentro de mim.
Minha mãe queria me acompanhar, como fazia sempre que eu me ausentava por uma hora. Mas eu insisti para que ficasse com meu pai, com meus irmãos, com as mulheres da família… dizendo, enquanto deslizava minha mão sobre a dela:
— Fique com todos, mãe. Eu só quero tomar banho, dormir… e acho que meu sono vai durar até o segundo dia do Eid.
Felizmente, ela não veio comigo. Se tivesse visto o que aconteceu, ouvido o que foi dito, não teria dormido aquela noite.
Ao abrir a porta da grande casa, o cheiro da terra molhada entrou junto com os risos das crianças no quintal. A casa inteira parecia me acolher, como se recebesse um filho que demorou a voltar.
Os filhos da minha tia correram até mim, pequenos, com sorrisos de Eid estampados no rosto, cantos de infância perseguindo meus passos. E antes que eu pudesse sorrir para eles ou me ajoelhar para abraçá-los, outra porta se abriu, inesperada.
Era meu avô.
Seu rosto, como nunca o tinha visto antes, estava severo, uma nuvem de verão prestes a desabar em trovões, e as veias do pescoço pulsando de raiva. Seu olhar descia sobre mim como uma flecha, liberando um arco de silêncio aterrorizante.
Antes que eu pudesse perguntar ou me preparar, a mão dele caiu sobre o meu rosto.
Um tapa… não no rosto, mas na alma.
Um tapa que despertou em mim memórias antigas… o tapa da “estrutura de segurança política”.
Não caí, apenas recuei um passo, como se o chão sob meus pés tivesse cedido. Minha cabeça girou e todo som dentro de mim silenciou, como se a própria voz tivesse medo de si mesma. Cada sentido se calou, impedindo-me de falar.
Não sei… será que aquele tapa era uma pergunta? E será que o meu silêncio era uma resposta que não cura, não conforta, não satisfaz?
Antes que eu pudesse dizer: “Por quê?”, meu tio Abu Salah, irmão mais novo do meu avô, aproximou-se. Havia em seu rosto algo como cautela, e ele segurava a mão do meu avô com uma delicadeza que escondia uma tempestade contida.
— Acalme-se, irmão… vamos tentar entender o que aconteceu durante a sua ausência.
Ele inclinou-se para mim, olhando diretamente nos meus olhos, como quem procura uma gota de arrependimento, e falou com voz firme, mas tentando reparar o que havia se quebrado:
— Avance, Naaman… beije a mão do seu avô e peça desculpas. Não por você mesmo, mas pelo que sua ausência nos trouxe.
Levantei-me, carregando uma montanha de perguntas sem respostas. Hesitei, passo após passo. Como poderia pedir perdão por um pecado que não cometi, carregando o peso do medo que outros plantaram em mim?
Mas avancei. Meus olhos baixos, passos pesados, como quem carrega o fardo de uma nação inteira.
Estendi minhas mãos, beijei a mão do meu avô e disse, em voz baixa, sufocada pela vergonha:
— Peço desculpas, vovô…
Ele não respondeu.
A mão que segurava escapou dos meus dedos, como se se desligasse de mim, e então sua voz explodiu pelas paredes da casa:
— Não ficou um palmo desta casa intacto. Seus soldados a pisotearam, seus cães a vasculharam… Não respeitaram casas, pessoas ou mulheres. Assustaram sua mãe, apavoraram suas irmãs, e nossas crianças choraram, suas vozes ecoando diante do que viram: perturbaram seus brinquedos, espalharam seus pertences, bateram nas portas. Todos os olhos me observavam, esperando explicações ou julgamento, vizinhos e transeuntes pararam para olhar de longe, e todos se perguntavam… e ainda perguntam o que fizemos… e tudo isso… por sua causa!
Então meu tio Abu Salah segurou a mão do meu avô com suavidade, pousando-a sobre minha cabeça, como quem tenta reconstruir o que foi quebrado. Passou a mão no meu rosto e disse, com voz carregada de dor:
— Você precisa pedir desculpas à sua mãe, ao seu avô, a todos da casa, Naaman… O terror que sentiram em poucas horas, nenhum tempo do mundo poderá reparar. Esta dor não é sua, mas você a carrega. Eles viram o que aconteceu aqui… como poderiam imaginar o que aconteceu com você? Você não entende o efeito da sua ausência sobre eles. Tentávamos manter-nos afastados da política, correndo atrás do nosso pão… então o que fez você trilhar o caminho do fogo?
Aproximei-me do meu avô mais uma vez, com os olhos baixos, como se carregasse o peso de uma culpa — tanto pelo que aconteceu quanto pelo que não aconteceu.
Estendi as mãos e beijei a mão dele, áspera, marcada por décadas de trabalho e privações, e disse, com voz baixa:
— Perdoe-me, vovô… Não sabia que os magoava, e não era minha intenção. Não estava perdido, mas o medo que vivi lá era maior do que eu. Agora sei quanto sofreram! E quanto lhes causei aperto! Mas eu… eu não quis.
Ele permaneceu em silêncio, virou-se e caminhou para seu quarto.
Segui-o com o olhar, o peito ainda agitado. Queria gritar: “Não queria machucá-los…”
Mas o silêncio, depois daquele tapa, parecia uma prece tímida, que não ousava ouvir a si mesma.
Sentei-me à beira da cama, e a imagem do meu pai, ausente, brilhava na minha mente, como se me dissesse:
— Todos nós fomos feridos, meu filho… mas não odiamos quem amamos. Reprovamos para que não se machuque, e para que não nos machuque novamente.
Fechei a cortina, tirei a camisa do cárcere, e olhei para o espelho…
Quem é este que me encara?
Não sou eu.
Mas nos seus olhos ainda havia resquícios do Naaman que fui.
Então minha avó entrou para me consolar, deslizando as mãos sobre meu rosto cansado, como quem traz um pouco de paz para dentro de uma casa que parecia vazia sem mim. Sentou-se ao meu lado, acariciou meu rosto e disse:
— Preparei o banho para você, meu querido… Levante-se, lave-se, e deixe que a tristeza escorra junto com a água. A casa sem você parecia sem alma.
— Vou abrir uma nova página… para minha mãe, para você, para meu avô, para meu pai… e para mim mesmo.
Terminei o banho, pronto para me deitar, quando suaves batidas à porta anunciaram uma visita inesperada. Só havia uma pessoa na casa que batia assim.
Entrou meu tio, Abu Salah, o único intelectual da família, ex-funcionário que ocupou o cargo de diretor dos Correios e Telégrafos durante o período francês na Síria e depois, que testemunhara a política e os políticos de perto.
Seu rosto sempre carregava traços de um tempo passado, com uma sombra de orgulho por aquela fase, e por histórias e rituais que contava, que nós mal compreendíamos completamente.
Ele parou à beira da cama, lançou sobre mim um olhar demorado, como se examinasse meu rosto à luz da memória, e falou com sua voz grave e pausada:
— Quero conversar com você… sobre o que aconteceu e sobre o motivo da sua prisão. Vim hoje especialmente por sua causa, porque conheço bem meu irmão mais velho, sei como ele pensa, como age. E temia que pudesse lhe causar algum dano — não porque o odeie ou guarde rancor, de maneira alguma. Mas ele é um homem acostumado a buscar seu sustento desde as primeiras horas da madrugada até o fim do dia. E sempre foi assim, desde que eu o conheço, lá em casa, nosso pai, que Deus tenha sua alma.
Sentei-me na beira da cama, ajeitando o lençol como quem tenta reorganizar algo interno após o caos, enquanto ele se acomodava na pequena cadeira junto à minha escrivaninha. Tirou do bolso do paletó um maço de cigarros enrolados à mão, pegou um e me ofereceu, acendendo outro com calma estudada, e soltou a fumaça no ar como se estivesse desenhando uma história antiga.
— Esperava que isso acontecesse com você? — perguntou, desviando o olhar, como quem não quer me ver quebrado.
— O que quer dizer? — respondi, tentando aparentar firmeza, apesar do entorpecimento que ainda corria em meus ossos das noites passadas.
— Quero dizer… seu crescente fascínio pelos livros, pelas palavras, pela poesia… tudo isso tem um preço, e você pagou a primeira parcela.
Houve um silêncio, e ele fixou os olhos nos meus, como se medisse a idade do medo que carregava neles, e continuou:
— Sabe, nos tempos do mandato francês, sabíamos quando falar… e sabíamos quando calar. Na época da França, as leis eram claras, os soldados eram claros, até mesmo as prisões tinham regras. Hoje… ninguém sabe onde alguém começa, nem onde termina.
Quis dizer algo, algo para me defender ou defender o fio de sonho que eu carregava em meio ao labirinto, mas as palavras me abandonaram, assim como meu corpo me abandonara nas noites em que lutei contra a sombra, sem som.
— Então, o senhor, tio, acha que cometi um erro? — murmurei, buscando mais uma absolvição que uma resposta.
Ele sorriu, ou assim me pareceu, e disse:
— Não, meu filho, você não errou… mas sonhou. E sonhar hoje tornou-se um crime. Não o culpo; só quero que desperte, que perceba que o mundo não é sempre como nos livros, e que as pessoas ao seu redor não são poetas. Vivemos tempos em que é preciso esconder o coração tão bem quanto se esconde uma arma.
Levantou-se de repente, como tinha chegado, e soprou uma última nuvem de fumo contra o teto do quarto. Antes de sair, disse apenas:
— Dorme. E tenta esquecer… porque não é a pancada que parte, é a memória.
Fiquei sozinho, a observar a fumaça do seu cigarro desfazer-se no ar pesado do quarto, enquanto me perguntava:
Será que eu estava a sonhar… ou apenas não sabia esconder o coração?
Mas, depois de sair, voltou. Ficou parado à porta, encarando a penumbra que se espalhava pelos cantos, e, com passos lentos, regressou à cadeira. Sentou-se de novo e esmagou a beata do cigarro no cinzeiro de vidro — um resto do seu antigo escritório nos correios.
— Olha, Nu’man… — disse, e havia um rio a nascer-lhe na voz. — Nós não somos os primeiros a ir parar à prisão. Nem seremos os últimos a sonhar. Mas este país… viver neste país não é descanso, é tropeçar sempre. Não é porque não haja gente boa; é porque não há esperança fora destas paredes altas.
Olhei para ele. Ele prosseguiu, como se desatasse um nó antigo:
— Lembras-te, quando eras pequeno, e me perguntavas sobre a nossa história? Eu dizia-te: “O nosso passado está cansado de um povo que não se fixa, que não se une, que não sabe governar-se.” Gritávamos “independência”, mas quando o ocupante se foi, voltámos a lutar — pelo estandarte, pela cadeira, pela palavra.
Fez uma pausa, depois falou mais baixo, com menos raiva:
— Este poder? Este pelo qual foste preso? Isto não é poder; é prato sobre prato, muro sobre muro. Devolve-te morto, mesmo que ainda andes a pé. Tudo nele se constrói no medo, na obediência, não na convicção. Não querem gente que pense; querem gente que marche, que cale, que bata palmas.
Suspirou devagar, desviando o rosto, como quem já não suporta ouvir a própria voz:
— Este país vai transformar-se num museu de arames, num cemitério de ideias. Eu, meu rapaz, cheguei a odiar-me por ter acreditado que a cultura podia salvar. Trabalhei com livros, com correios, com telefones… e no fim? Tornei-me testemunha da extinção do homem livre.
— Então, tio… o que é que fazemos? — perguntei-lhe, sentindo-me afundar no peso da sua pergunta maior.
Ergueu o dedo, como quem lança uma sentença:
— Escolhemos. Escolhemos viver certo ou viver a salvo. Mas as duas coisas? Tornaram-se impossíveis. E sabes qual é a dor disso? É que, se escolhes viver certo, tens de decidir como vais pagar sozinho. Porque os outros… os outros vão culpar-te, ou calar, ou virar o rosto como se nunca te tivessem conhecido.
Senti algo mover-se no meu peito, uma mistura de tristeza, de perplexidade e de raiva. Disse-lhe:
— Mas nós somos jovens! Não temos o direito de ficar assim, derrotados, logo no primeiro embate.
Olhou-me longamente, e a sua voz, de repente, ganhou uma doçura inesperada:
— Sim, vocês são jovens. E por isso ainda podem ter esperança… Mas repara em duas coisas: primeiro, quem está atrás de ti — família, gente próxima; segundo, não deixes que essa esperança se transforme em ilusão. Não vivas para morrer com dignidade; morre, se for preciso, para viver com dignidade. A diferença pode parecer pequena… mas é essencial.
Ergueu-se por fim e parou à porta do quarto. Antes de sair, disse a sua última frase:
— Este país não tem lugar para quem grita; tem lugar para quem consegue salvar-se a si e à sua família.
Deixou a porta entreaberta, como se me convidasse a escolher entre sair ou ficar.
Continuei sentado, imóvel. Era como se o meu tio tivesse saído do quarto, mas o eco da sua voz permanecesse entre as paredes, batendo-me na cabeça como quem tenta acordar algo adormecido dentro de mim.
“Não vivas para morrer com dignidade; morre, se for preciso, para viver com dignidade…”
A frase rodava em mim como um turbilhão, puxando-me para o fundo de perguntas sem resposta.
Teria eu sido ingénuo ao pensar que a dignidade só se comprava com a verdade?
E será legítimo viver uma vida calma, condicionada, silenciosa… e ainda assim dizer que sou íntegro?
Olhei para as minhas mãos: continuavam a tremer.
Nem o banho quente tinha conseguido apagar o frio que se me colara ao corpo nas noites longas da cela.
Mas quem tremia mais… era o meu coração.
O coração que julgava encontrar no sonho um consolo e, afinal, via no sonho uma nova armadilha.
Seria eu realmente livre?
Ou apenas um rapaz que escolhera ser honesto para provar a si mesmo que existia?
Sempre pensei que as paredes entre mim e o mundo eram externas, visíveis, concretas…
Mas agora vejo muros mais fundos, erguidos dentro de mim:
o muro do medo, o muro da dúvida, o muro das palavras do meu tio naquela noite.
Pela primeira vez senti que não sabia qual dos caminhos me servia melhor:
seguir pela corda esticada entre a dignidade e a segurança,
ou cortá-la de vez e precipitar-me no vazio.
Mas cair… para onde?
Serão os sonhos e as perguntas, afinal, dignos de prisão?
Ou a vida verdadeira só começa quando deixamos de sonhar e começamos a agir?
E esse agir… será um gesto único, ou uma sucessão de escolhas incompletas,
cada uma cobrando um pedaço de nós?
Fechei os olhos e deitei-me.
Ouvia a voz do meu avô nas histórias antigas…
a voz cansada do meu pai na última visita…
a voz da minha mãe a cada regresso meu…
e a minha própria voz, lá, no escuro, jurando que nunca me quebraria.
Esta noite, não jurei nada.
Esta noite… apenas escutei.
Mas, com tudo o que havia em mim… não adormeci.
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