Parte Seis
Numan balançou a cabeça, sorrindo:
— Ele era tudo isso. Comerciante, barbeiro, artesão… não por vaidade, mas para que eu não precisasse depender de ninguém quando crescesse.
— Um jovem me colocou em uma pequena cadeira, ao lado de uma mesinha simples, sobre a qual havia um velho telefone de disco giratório. Ao lado, um fogareiro antigo, dois bules de chá e uma bandeja abarrotada de copos de vidro.
— As conversas fluíam pelo espaço, entre risadas baixas e silêncios densos, como se todos guardassem segredos sob suas camisas.
— Assim que meu pai terminava de cortar o cabelo de um cliente, o rapaz corria até ele, acenava com um pequeno espanador e dizia com a voz que o lugar já conhecia:
— Com prazer, senhor!
— E começava a varrer o chão, limpando os restos de cabelo recém-cortado.
— O cliente, ao vestir o casaco, estendia a mão ao bolso, retirava uma pequena moeda e colocava na mão do meu pai, entregando outra ao jovem trabalhador.
Muna perguntou, com a voz carregada de emoção:
— Você se sentia orgulhoso? Ou estranho?
Numan sussurrou:
— Eu sentia que pertencia… à loja, à tesoura, a um homem que estava me construindo um pequeno prestígio, sem perguntar se eu entendia.
Houve um breve silêncio na sala, como se preparassem o espírito para atravessar outro estágio da memória. As palavras de Numan pareciam carregadas de poeira — aquela que não se dissipa facilmente, mas deixa uma marca indelével na alma.
O pai de Muna olhou para ele, com os olhos brilhando de um lampejo misterioso, como se uma peça finalmente se encaixasse em sua mente.
— Numan… você se lembra do homem que ficava atrás da outra mesa? Aquele que você disse que anotava e organizava os papéis?
Numan hesitou por um instante, depois respondeu:
— Sim, lembro-me bem! Era o (—–). Na época eu não sabia quem era, mas ele falava muito com meu pai sobre contas e registros.
Um sorriso se abriu lentamente nos lábios do pai, como alguém que encontrou a última peça de um quebra-cabeça, e disse à filha com calma:
— Eu suspeitava… tudo se encaixa. Nome, função, até a maneira como desaparecia por momentos.
Muna piscou, surpresa:
— O que quer dizer, pai?
Ele endireitou-se, pousando a mão na borda da mesa à sua frente, como quem se prepara para revelar um segredo guardado por muito tempo:
— Quero dizer que o pai de Numan, na verdade, não era barbeiro. Ele era um dos grandes comerciantes da cidade nos anos passados… Sua loja na Rua Al-Jalaa, na cidade de Douma, era uma das mais famosas em artigos domésticos, e tinha negócios com uma empresa em que trabalhei quando jovem em Beirute. Sim, lembro bem… eu fornecia caminhões de transporte para levar suas mercadorias de Beirute à Síria.
Ele se virou para Numan, e sua voz baixou, carregada de segredo:
— E o contador que você mencionou… (—–) foi um dos mais notórios envolvidos em fraudes e roubos. O homem desapareceu do país de repente, no final dos anos cinquenta, levando consigo contas inteiras que nem a justiça nem as autoridades conseguiram rastrear.
Muna soltou um suspiro surpreso:
— Você jura que foi ele?
O pai respondeu com firmeza:
— Sem sombra de dúvida. O que ouvi de Numan, ao longo de nossas últimas conversas, fez-me ligar os fatos. Ouvi cada detalhe sem interromper, guardando tudo na mente… até que a imagem se completou hoje.
Olhou para Numan com uma mistura de respeito e pesar:
— Seu pai, meu filho, não caiu por incompetência, mas porque foi traído por alguém em quem confiava. Se não fosse a desonestidade daquele contador, ele teria permanecido no comando de seu comércio. Mas perdeu tudo num instante: capital, confiança, contas… e de credor tornou-se devedor.
Houve um breve silêncio, e ele continuou com voz mais profunda:
— E quando os bancos vieram atrás dele, ele não fugiu… preferiu ficar e pagar sua dívida, moeda por moeda. Comprava de volta sua dignidade com uma tesoura de barbeiro e um pente pequeno.
Numan baixou a cabeça, e seus olhos lutavam contra uma lágrima quente, sem saber se era de orgulho ou de dor.
Muna murmurou, com ternura:
— Pai… por que nunca nos contou isso antes?
Ele respondeu, sorrindo com uma ponta de melancolia:
— Porque eu não tinha certeza. Mas agora sei. Sei que estamos diante do filho de um homem que construiu, com as próprias mãos, uma escada para subir acima das feridas. Ele não chorou, não reclamou… escolheu recomeçar em silêncio, como fazem os grandes quando quebram, mas não se rendem.
Ele estendeu a mão e pousou-a suavemente no ombro de Numan:
— Escondeu de você muito, meu filho… não por medo, mas para que não carregasse algo para o qual ainda não estava pronto.
Os lábios de Numan tremeram, e ele permaneceu em silêncio… o silêncio dizia mais que qualquer palavra.
Muna olhou para o pai e depois para Numan com um novo olhar — uma mistura de surpresa, admiração e algo indefinível, mas que brilhava claramente em seus olhos.
Ela quis reanimar a conversa, e sorriu para Numan com suavidade:
— Continue, Numan… talvez falar alivie o impacto da surpresa.
Numan respirou fundo, como se mergulhasse em uma lembrança distante e preciosa, e começou a falar, com a voz quase em sussurro, como se escutasse a si mesmo:
Num novo verão, comecei a sair pela porta da frente às escondidas da minha mãe, à espreita de alguém que viesse me pegar pela mão e me conduzisse até meu pai.
E quando a espera se prolongava, e ninguém aparecia… eu me aventurava sozinho, caminhando com hesitação, como se andasse num sonho perdido.
Ele baixou a cabeça por um instante e continuou, com os olhos brilhando:
— Sob o calor abrasador, eu me apoiava em uma pedra grande diante da porta de uma parente da minha mãe. A pedra não era estranha, nem a porta. Eu a acompanhara uma vez, numa visita curta, da qual só lembrava o rosto dela rindo com as mulheres no pátio.
O sono me dominava pelo cansaço extremo, e eu adormecia sobre aquela pedra, sem saber quanto tempo havia passado… até que uma mão quente me despertava com delicadeza. Era a mesma mulher, que me acolhia, me conduzia para dentro de casa e estendia um sofá para mim, sob a sombra de um alto figueiral cujos galhos se estendiam pelo quintal.
Muna comentou, com uma ternura que transparecia na voz:
— Então vocês eram pobres, mas você descreve a pobreza como se fosse um sonho bonito.
Numan esboçou um sorriso tênue e disse:
— Eu não sabia! O que significa ser pobre… ou se éramos pobres? Mas não estávamos derrotados.
O pai de Muna olhou para a filha com um misto de admiração silenciosa, como se estivesse lendo nas palavras de Numan algo além da história.
Numan prosseguiu:
— Dormia ali por longas horas, e ao abrir os olhos, parecia que nunca havia deixado nossa casa. Tudo era familiar, exceto que meu pai não estava ali…
E numa tarde fria, no final do outono que sucedeu aquele verão, eu já tinha completado quatro anos. Um grande caminhão chegou, transportando minha cama, os móveis de casa, até mesmo os utensílios de cozinha.
Meu pai subiu ao lado do motorista, abraçando minha mãe, minha irmãzinha e meu irmãozinho recém-nascido. Tentaram me fazer sentar com eles na frente, mas eu insisti em permanecer atrás, ao lado da minha cama.
O pai de Muna franziu levemente a testa e perguntou:
— Você se recusava a ficar perto deles?
Numan balançou a cabeça:
— Eu só queria ficar onde me encontrava… entre minhas pequenas coisas, num mundo que eu conhecia.
E acrescentou, em voz baixa:
— Meu pai me enrolou com um cobertor grosso, temendo o frio da noite. Apoiei a cabeça no meu pequeno travesseiro e adormeci ao som do leve gemido da carroceria do caminhão.
Quando despertei, com os primeiros fios de luz do amanhecer, encontrei todos nós dormindo em um quarto estranho para meus olhos e minha alma.
Hesitei em sair da cama, pensando estar sonhando. Estendi a mão até minha irmãzinha e a acordei sussurrando:
— Onde estamos?
Ela murmurou sonolenta:
— Não sei…
E voltou a se cobrir, mergulhando de novo no sono.
Percebi que todos estavam ali, e meu coração se acalmou. Permanecei sob meu cobertor, observando minha mãe enquanto ela acordava e começava a organizar alguns móveis espalhados de forma desordenada.
Chamei-a suavemente:
— Mãe, quer que eu ajude em alguma coisa?
Ela se voltou para mim soltando um longo suspiro e respondeu:
— Você não poderá fazer nada até que nossa nova casa esteja pronta!
Olhei ao redor, confuso:
— Quer dizer que esta casa velha… será nossa?
Ela sorriu levemente e respondeu com firmeza:
— Não, este é nosso novo lar… então não fale demais, volte a dormir!
Um silêncio breve tomou conta do quarto, como se até as paredes estivessem ouvindo.
Muna comentou, baixinho, olhando para o pai:
— Imagine, pai… começar a vida sobre uma pedra e acordar de repente em uma casa que você não conhece.
O pai murmurou, quase para si mesmo:
— Não são as casas que se perdem, filha… é a certeza do homem sobre seu lugar no mundo.
Capítulo Vinte e Três 23:
Os três se olharam, e em seus olhos havia uma mistura de tristeza e orgulho, enquanto no coração vibrava um tremor sutil, algo que só se sente quando a saudade desperta de um sonho antigo.
Numan interrompeu sua narrativa quando sentiu que a voz quase o traiu; murmurou para si mesmo, temendo que Muna ou seu pai vissem a lágrima prestes a cair. Ficou imóvel por alguns instantes, e então se voltou para ela, com voz baixa, carregada de desejo contido:
— Não é a sua vez de falar, Muna?
Falou tentando aliviar o peso do momento, mas sentiu algo estranho apertar seu peito, como se as palavras ficassem presas na garganta.
Muna respondeu após um silêncio breve, como se tateasse suas palavras no ar. Começou a falar sobre sua mãe, sobre os avós maternos, e sobre a forma como todos lidavam com eles. Falava com cuidado, com uma língua que pulsava amor profundo e gratidão, tecendo lembranças que não se apagariam. Prosseguiu:
— Minha mãe… não era apenas uma mãe. Era um mundo inteiro. Ela ensinava árabe na universidade, despertava a poesia nos corações dos alunos, fazia a gramática cantar, e a retórica pendia das frases como cachos de jasmim na varanda de Beirute.
Fez uma pausa, como se as palavras pesassem sobre sua língua, e suspirou profundamente antes de continuar:
— Mas, em casa, ela era a mãe que deveria ser… delicada, firme, amiga, profunda em pensamentos, medos e amor.
Os olhos de Muna se afogavam em saudade; ergueu o olhar ao teto e voltou a encontrar os de Numan, esboçando um sorriso pálido, como se dissipasse a névoa acumulada sobre suas pálpebras. Continuou então, com uma voz carregada de memórias dolorosas, mas firme:
— Ela me tratava como seu projeto mais belo, não apenas como uma criança, mas como uma amiga que ouve e ensina. Como uma mulher educando outra mulher para a vida. Ela não punia, dialogava. Sempre me dizia: “A liberdade, Muna, não se dá… se treina.”
Havia um encanto particular em suas palavras, e o silêncio de Numan parecia arder entre elas. O ambiente ficou mais pesado, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas contidas, prestes a cair. Mas ela não se rendeu, falando com firmeza, embora a voz tremesse diante da perda:
— Quando ela morreu… senti que uma parte da minha alma foi arrancada suavemente, de forma dolorosa, como se eu tivesse sido separada da luz que respirava. Tudo o que sou hoje é uma extensão dela… Eu, na verdade, não sou nada além de uma sombra quente de sua voz, uma versão pálida do seu grande coração.
Numan não a interrompeu; apenas ouviu em silêncio absoluto, como se sua língua tivesse se congelado diante da profundidade de seu sofrimento. Cada palavra era capturada com cuidado, como se fosse um segredo ouvido pela primeira vez. Em seus olhos havia uma solenidade incomum, e seu peito se abria gradualmente à nova percepção: que ser humano é, por vezes, tornar-se o eco de um amor que se foi.
Murmurou para si, contemplativo:
— Raros são aqueles criados com amor absoluto, e puros aqueles que carregam em seus corações o calor dos ausentes.
Muna havia terminado sua fala, e o silêncio ainda dominava o espaço. Numan não conseguia expressar o impacto das palavras, mas seus olhos diziam tudo o que a língua não podia.
Ela o olhou, e continuou, com voz ainda mais baixa:
— Minha mãe não era apenas minha mãe. Era meu espelho, meu guia, minha amiga… e sempre um passo à minha frente. Sabia o que eu pensava antes mesmo de eu falar. Depois que ela se foi… tive que me tornar a mãe. Mas… para quem? Levou meu irmãozinho consigo, aquele que tanto amávamos… Como se não tivesse me deixado nada além de um pedaço de pano velho, que pensei ser apenas uma lembrança. Mas depois percebi… ela, mesmo após partir, queria me ensinar força por meio dele.
Numan apoiou o queixo na mão e murmurou quase como um sussurro do coração:
— É belo quando alguém é criado com esse tipo de amor… um amor que dá asas, e mesmo que a morte quebre uma delas, ele ainda consegue voar com a outra.
Após breve hesitação, perguntou:
— Muna… você escreve?
Ela respondeu surpresa:
— Escrevo?
Numan sorriu:
— Quero dizer… essa narrativa, seu modo de descrever, de evocar a saudade, de trazê-la à vida… se você registrasse isso, muitos seriam tocados.
Pela primeira vez, um sorriso genuíno desenhou-se em seus lábios, puro e transparente, nada forçado ou ingênuo; aquele sorriso que nasce quando alguém te faz sentir um valor interior que você sequer sabia possuir.
— Talvez… talvez eu devesse começar por ela. É o mais justo escrever sobre ela antes de qualquer outra coisa.
Numan levantou-se com leveza e foi até uma sala ao lado, retornando com um pequeno caderno encadernado em couro escuro. Estendeu-o a ela:
— Comece por aqui, agora.
Ela hesitou por um instante, depois tomou o caderno de sua mão, sem dizer palavra, mas os olhos falaram tudo. Um momento silencioso, porém, nos corações de ambos, foi o início de algo novo… uma sensação ainda não nomeada, mas que nascera ali.
No canto oposto, o senhor Ahmad não conseguiu suportar a intensidade daquela sinceridade e emoção; retirou-se calmamente, deixando-os reconstruírem, pouco a pouco, o que o tempo havia corroído em suas vidas.
Ahmad participava das noites deles com algo de seu interesse científico e profissional, deixando que suas feições revelassem o amor profundo que preenchia sua existência. Muna era, sem dúvida, o fruto mais belo desse amor.
Ele sempre carregava na memória uma história, contida em poucas palavras que resumiam toda a sua vida… um dia contaria a eles, quando chegasse a hora. Nascera em uma das vielas estreitas, onde as casas se colavam umas às outras como segredos de pessoas, e onde o sonho se manifestava apenas em sussurros. Era o caçula, com um olhar estranho, diferente dos demais irmãos. Na infância, não se conhecia nele grande paixão por brincadeiras; via-se frequentemente sob a luz de um lampião, folheando um livro usado, tocando suas páginas como quem acaricia um sonho frágil.
Ia à escola com roupas gastas, mas voltava todos os dias com palavras de louvor registradas em seu caderno, mais do que se dizia em sala. Sua excelência não se fazia barulho, era esforço silencioso, iluminando como uma pequena vela na escuridão da pobreza.
E como a vida não lhe estendia os caminhos floridos para seus sonhos, trabalhou desde cedo: distribuía pães, copiava textos na máquina de escrever de um pequeno escritório e ajudava um velho cego a organizar sua biblioteca em troca de horas de leitura gratuita.
Entre trabalho e estudo, cresceu como uma chama em uma noite rural escura. Ao chegar ao ensino médio, seu nome já circulava pelas escolas vizinhas. Uma bolsa de estudos — merecida por sua dedicação e justiça — levou-o à França, a universidades tradicionais, onde portas que jamais imaginara se abriram para ele.
Em uma dessas bibliotecas, conheceu Maya. Filha de uma família rica, bonita não de forma artificial, mas com algo de interno que lembrava clareza. Cuidava de seus estudos como quem reconstrói algo frágil em sua própria alma. Ele, vindo de um bairro humilde, nada tinha para impressioná-la senão sua inteligência, a sinceridade de suas palavras e o olhar que dizia o que não se podia falar.
Conheceram-se… e se amaram.
Não foi um amor passageiro de verão em Paris, mas uma planta que cresceu entre cadernos de estudo, nos cantos silenciosos da biblioteca e nas calçadas que os conheceram antes de se conhecerem a si mesmos.
Ela apresentou-o ao pai, um homem que confiava apenas naqueles cujas ações provavam sua dignidade. Ahmad era digno disso. Ao retornar a Beirute, ingressou na empresa de construção que o pai de Maya possuía.
E que separação cruel… aquela mesma empresa que lhe concedera a bolsa para continuar seus estudos! Sem que nenhum deles soubesse, os fios do destino já vinham sendo tecidos silenciosamente desde então.
Mas ele logo mudou sua expressão. Introduziu nela tudo o que sua alma havia acumulado de conhecimento e compreensão, e passou a conduzir os projetos com um entusiasmo raro, atento a cada detalhe, como se estivesse construindo uma casa para sua mãe.
E, em meio a tudo isso, jamais esqueceu Maya. Ela era a razão, a companheira, a luz que iluminava seu caminho. Seu amor por ela não se manifestava em palavras, mas em gestos concretos: cuidado diário, lealdade inabalável, dedicação rara, especialmente junto ao pai dela. Com o tempo, passou a ser visto pelo homem não apenas como um jovem cumpridor das obrigações de uma bolsa de estudos, mas como um futuro genro confiável… e depois, como um filho, não de sangue, mas do coração.
Numa tarde que unia o “discurso do amanhecer” a Muna e seu pai, o sol surgia lentamente por detrás das colinas, e o céu se tingia de cores que não tinham nome. Muna sentava-se na varanda, contemplando o silêncio das árvores e o despertar do universo, enquanto seu pai permanecia junto à beira, tomando seu café com aquele silêncio que ele conhecia tão bem. Não era um silêncio comum… parecia haver algo entre eles que ainda precisava ser dito.
Muna falou, com voz que misturava hesitação e curiosidade:
— Papai… eu te amo! E te amo ainda mais quando você me fala da mamãe.
Ele se virou para ela, olhou em seus olhos e sorriu — um sorriso que não se via nos lábios, mas se sentia na alma.
— Ah, Muna! E o que você não sabe sobre ela? Ou quer saber algo específico, minha querida?
— Tudo… Mas especialmente: como vocês se conheceram? Por que se amaram? E o que fez com que ela escolhesse você entre todos que estavam diante dela?
Ele riu suavemente, sentou-se diante dela, apoiou a xícara na pequena mesa de madeira e disse:
— Ela não me escolheu de entre todos… e eu também não a escolhi. O que nos uniu foi algo que escolheu por nós. Havia algo que eu mesmo tentava entender, mas ela era mais rápida em perceber, interpretar e colocar em prática. Talvez fosse minha inteligência, talvez minha sinceridade, talvez… porque eu era pobre. Mas minha pobreza nunca pôde me vencer, nem um dia conseguiu me quebrar.
Silenciou por um momento, os olhos perdidos no horizonte, como se conversasse com a sombra de um passado ainda quente em seu coração.
— Conheci-a na biblioteca da universidade, em Paris. Eu buscava algo entre prateleiras de livros, um título que ligasse engenharia à filosofia, quando ouvi sua voz perguntando por um livro que relacionasse a língua árabe à filosofia. Rimos juntos — ela percebeu que eu estudava engenharia, e eu percebi que ela estudava árabe. Mas cada um de nós buscava a profundidade em seus estudos. E nos aproximamos mais quando a língua do nosso país e a dor do exílio criaram uma nova linguagem entre nós. Ela vinha de uma família rica, mas carregava em si a pureza e a simplicidade que nem as aparências conseguiam corromper.
— E você se apaixonou por ela rapidamente? — perguntou Muna, inclinando a cabeça.
— Não. Não foi amor à primeira vista. Foi amor pelo respeito. Pelo primeiro encanto com o cuidado, pela serenidade, pela paixão de cada um pelos estudos.
Após um breve silêncio, ela perguntou:
— E ela? Como te amou? Não sabia que você era pobre?
Ele recolheu o olhar por alguns instantes, rememorando o tempo, e respondeu calmamente, como se mesclasse ternura e prudência:
— Ela sabia. E descobriu que me amava sem precisarmos declarar nada. Uma vez me disse: “Você é rico, mas à sua maneira.”
Sua voz se fez profunda, carregada de amor e sentimento:
— Minha riqueza era minha inteligência, minhas palavras, meu coração. E meu destino… e isso era tudo.
Silenciou por alguns instantes, os olhos vagando pela lembrança, saboreando cada instante precioso antes de murmurar, mais baixo:
— Muna… mamãe era o meu sonho, e eu era o sonho dela. E nossos sonhos se encontraram em você. No dia em que você chegou a este mundo, nasceu o dia verdadeiro que fez florescer nosso amor — a única verdade que uniu esses dois sonhos.
Muna sorriu, seus olhos molhados pela luz suave do entardecer. Estendeu a mão e segurou a de seu pai.
— E eu me orgulho de vocês dois. E espero que, se algum dia eu amar, meu amor seja como o de vocês.
O rosto de Ahmad se iluminou em um sorriso de felicidade, colocando a mão sobre sua cabeça com ternura:
— E se isso acontecer, você será mais sábia do que todos nós, porque é nossa filha — filha de um amor que nunca tememos, mas no qual acreditamos até o fim.
Muna permaneceu em silêncio por alguns instantes, e naquele momento sereno, imerso na luz da memória, seu coração se encheu de esperança e do orgulho do amor.
Capítulo Vinte e Quatro 24:
Numa tranquila noite de outono, quando o vento brincava com as folhas amareladas, Numan e Muna sentaram-se à mesa de madeira num canto da pequena biblioteca. As luzes eram tênues, como se a própria noite tecesse seu silêncio com cuidado. À frente deles, cadernos de anotações estavam abertos, e em suas mãos repousavam xícaras de café forte, que pareciam traduzir o humor contemplativo do momento — cada gole clareava a mente e reorganizava os pensamentos.
Cada um carregava consigo um caderno com suas próprias anotações sobre uma obra que lhes despertara admiração: Anna Kariênina, de Tolstói. Numan folheava as páginas com cautela e, lentamente, começou:
— Intitulei minhas anotações: Anna Kariênina, de Lev Tolstói, publicado em 1877. Classificação: drama social — análise psicológica dentro de uma sociedade aristocrática russa.
Fez uma pausa breve e continuou com voz firme, despertando atenção:
— O romance se passa num ambiente carregado de tradições e hipocrisia, centrando-se na história de uma mulher casada chamada Anna, que se apaixona por um oficial atraente, Vronsky, e segue com ele por um caminho repleto de vergonha e isolamento… até seu fim trágico sob as rodas de um trem.
Muna interrompeu, com voz calorosa, como se suas palavras abrissem novas possibilidades para a conversa:
— Mas não é apenas a história de Anna, é sobre corações entrelaçados… Acrescentei uma nota sobre uma linha paralela igualmente importante: Levin e Kitty. Levin é uma presença silenciosa, refletindo sobre cada cena, um homem que busca sentido em meio ao caos, encontrando em Kitty uma companhia que o guia para a pureza do campo e a fé.
Numan assentiu, concentrando-se novamente em suas anotações:
— Na minha leitura, Tolstói não escreveu sobre traição, escreveu sobre a tragédia de uma alma que não encontra seu lugar. Anna não é uma traidora, é uma pessoa dilacerada entre o dever e a paixão, entre ser mãe e esposa ou viver como mulher que ama.
Muna ergueu-se, segurou sua página e começou a ler com atenção profunda, como se as palavras escapassem de seus lábios carregadas de emoção complexa:
— Anna é inteligente, magnética, e não cabe na vida fria que seu casamento com Karenin impôs. Ela buscou o sonho do amor, mas pagou o preço: rejeição, ciúmes, colapso emocional gradual… até que caiu sob o trem, como alguém que não encontra saída entre os trilhos.
Numan levantou o dedo, apontando para outra página do caderno, e acrescentou com voz reflexiva:
— Adicionei também uma análise de Vronsky… um cavalheiro da alta sociedade, que acreditava que o amor era apenas uma aventura, mas se perdeu ao se tornar responsável por uma mulher rejeitada por sua causa. Não era mau, apenas frágil, perdido entre desejo e sociedade, e Anna fracassou junto com ele.
Todos ficaram em silêncio por alguns instantes. O ambiente parecia flutuar nas reverberações de suas próprias palavras, como se aquela história estivesse sendo contada diante deles pela primeira vez. Muna observava atentamente o que Numan dizia, enquanto seu pai, ouvindo com concentração, fechava os olhos por um breve momento, como se a beleza estivesse mais em compreender o sentido do que em apenas ouvi-lo.
Após um silêncio prolongado, Muna perguntou:
— Pai, você acha que Ana poderia ter encontrado outro caminho? Poderia ter vivido sua vida fora desse conflito?
Ele respondeu, medindo cada palavra com cuidado, um sorriso que misturava reflexão profunda iluminando seu rosto:
— Talvez. Mas o conflito dela era puramente humano… entre o medo do desconhecido e a coragem de mudar. Ela poderia ter escolhido enfrentar seu destino sozinha, mas a verdade é que buscava algo mais profundo e só encontrou o abismo entre seus desejos e a realidade.
O silêncio se prolongou. Quando o café já estava quase no fim, seus olhos refletiam uma compreensão silenciosa, como se cada palavra tivesse acendido uma luz em seus próprios pensamentos, revelando camadas ocultas da história.
Muna sorriu, apontando com a caneta:
— Quanto a seu marido, Karinen… ele era o frio em pessoa… não amava, nem odiava; pesava as coisas com os olhos da sociedade, não do coração. Incapaz de acolher Ana, não a salvou quando pôde, mas também não a destruiu por maldade.
Juntos, eles resumiram, olhando para o quadro que haviam construído:
Personagem Traços principais Papel na tragédia
Ana Sensível, inteligente, conflituosa Heroína trágica em busca de amor
Fronski Bonito, emotivo, indeciso Amante perdido, vítima da superficialidade social
Karinen Conservador, racional, frio Símbolo da autoridade e das tradições da sociedade
Muna sussurrou, como se resgatasse uma melodia escondida da narrativa:
— Levin era outra história… mais próximo do próprio Tolstói. Um homem que pergunta: “Por que vivemos?” e encontra a resposta no cultivo da terra, no amor simples, na fé que não precisa de sermões nem igrejas.
Os dois permaneceram em silêncio por um instante, contemplando o mapa de símbolos que haviam construído juntos:
🚂 O trem: símbolo do destino, da modernidade impiedosa e da paixão que esmaga tudo à sua passagem.
🌿 Campo versus cidade: a cidade, lugar da falsidade e do barulho; o campo, espaço de tranquilidade e sinceridade.
♻️ Dualidades contrapostas:
Par Significado
Ana × Kitty Amor destrutivo × Amor equilibrado
Fronski × Levin Amante impotente × Buscador sábio
Cidade × Campo Ruptura × Harmonia
Suicídio × Fé Perda de sentido × Descoberta espiritual
Muna fechou seu caderno e disse, com calma:
— Não é apenas um romance sobre traição… é um amplo espelho da alma humana… como se Tolstói sussurrasse: amar significa caminhar na lâmina de uma espada… e perguntar: por que vivemos?
Numan respondeu com um sorriso contemplativo:
— E à beira dessa pergunta, começa todo romance… e talvez a própria vida.
Num canto discreto do café, sob a sombra generosa de uma velha nogueira que parecia acolhê-los, sentaram-se frente a frente. Entre eles, dois cafés ainda fumegantes e um silêncio gentil que permitia que as perguntas surgissem sem pressa nem barreiras.
Muna olhou para ele com olhos que eram meio acusadores, meio brincalhões, e perguntou, com uma leveza que lembrava uma pena tocando a superfície da água:
— Você já leu Tolstói?
Numan percebeu a sutileza do seu teste, o brilho travesso que escondia uma admiração silenciosa, e sorriu. Tomou um pequeno gole de café, como se invocasse um espectro distante, e falou com voz calma, quase descortinando uma cena que amava:
— Liev Nikoláievitch Tolstói não foi apenas um grande escritor russo… ele é o próprio sopro da literatura humana. Um homem destinado a viver mais de uma vida em apenas uma.
Encostou-se na cadeira, como se falasse consigo mesmo e com ela ao mesmo tempo, e continuou, com uma voz que equilibrava entusiasmo e serenidade:
— Nasceu em 1828 e morreu em 1910. Foi romancista, filósofo, reformador social. Rebeldou-se contra sua aristocracia, desceu à terra em busca de simplicidade e significado no trabalho manual, na terra, no suor, e não nas golas engomadas. Nos últimos dias da vida, deixou sua fortuna e prestígio literário, saiu de casa em segredo e morreu numa estação de trem isolada… como se quisesse partir sem títulos, sem ruído, apenas junto à terra.
Muna sentiu um arrepio leve percorrer o braço, não pelo frio, mas pelo peso da narrativa. Sussurrou, como se buscasse compreender:
— E ele foi feliz ao abandonar tudo isso?
Numan respondeu sem hesitar, a voz um pouco mais baixa:
— Não sei… mas parecia que queria morrer em paz, não em triunfo.
Respirou fundo, começou a mexer os dedos sobre a mesa de madeira, como se vasculhasse uma gaveta antiga de lembranças, e continuou:
— Suas obras mais famosas? Guerra e Paz, a epopeia que descreve a Rússia na época de Napoleão, e Anna Kariênina, o romance que me fez odiar um pouco os trens, e Ressurreição, onde queria renascer ele mesmo, não apenas seus personagens. E também contos como A Morte de Ivan Ilitch, Quanto Vive o Homem e O Demônio…
Muna o interrompeu, e a curiosidade em sua voz parecia uma criança correndo atrás de uma borboleta:
— E qual você mais gostou? Qual obra ficou em você?
Numan sorriu suavemente, olhando para ela como quem confessa um segredo:
— Talvez A Morte de Ivan Ilitch… porque nos ensina a morrer com honestidade, não com negação.
Depois, fixou o olhar nela, olhos que falavam sem precisar de palavras, e continuou:
— Mas o mais importante é que, nos últimos anos de sua vida, ele acreditou em algo que chamou de “cristianismo moral simples”… um convite à simplicidade, à não violência, ao trabalho manual, a combater o mal com o bem. Suas ideias influenciaram Gandhi, depois Martin Luther King. Ele escreveu literatura, viveu sua mensagem e morreu como viveu: à margem, não no palácio.
Inclinou a cabeça ligeiramente em sua direção, e um leve traço de humor passou pelo seu rosto:
— Então você acha que li o suficiente, minha querida? Ou estava me testando?
Muna riu. Seu riso parecia a primeira chuva de uma estação seca: delicado, leve, sincero. Olhou para ele, e com os olhos brilhando de surpresa e satisfação, disse:
— Na verdade, você me leu antes de me ler, Numan…
Capítulo Vinte e Cinco 25:
Muna mexia distraidamente na colher, como se escavasse lembranças antigas, e perguntou:
— Então… você poderia me lembrar dos principais escritores russos reconhecidos no mundo?
Numan sorriu ao ouvir a pergunta, como se fosse um chamado antigo que conhecia muito bem. Olhou em seus olhos e respondeu, como se estivesse percorrendo um salão grandioso de gigantes:
— Com todo prazer… é um mundo que nunca cansa de ser visitado.
Encostou o rosto levemente na mão dela, e ela se concentrou totalmente, enquanto ele continuava:
— Fiódor Dostoiévski (1821–1881), o filósofo da alma atormentada, mestre das grandes perguntas. Escreveu Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázov, O Idiota. Ninguém, ao que me parece, mergulhou tão profundamente na complexidade humana como ele.
— Liev Tolstói (1828–1910), o romancista-filosófico que semeou ética e reflexão na literatura. De Guerra e Paz a Anna Kariênina, passando por A Morte de Ivan Ilitch, sua alma oscilava entre fé e rebeldia, entre ascetismo e contemplação.
— Anton Tchékhov (1860–1904), o médico que curava feridas silenciosas com palavras. Escreveu O Jardim das Cerejeiras, O Gaivota, e centenas de contos curtos. Com sua simplicidade profunda, nos provocava perguntas sem fingir respostas.
— Nikolai Gógol (1809–1852), o pai do humor negro. Imaginem: escreveu sobre um nariz que foge do rosto de seu dono, sobre um casaco que muda destinos. Das Almas Mortas ao absurdo da vida, misturava fantasia e dor.
— Ivan Turguêniev (1818–1883), o romântico melancólico, talvez o mais aberto ao Ocidente. Em Pais e Filhos, registrou o conflito entre gerações como ninguém. Era poeta mesmo quando escrevia prosa.
— Alexander Pushkin (1799–1837), o fundador da literatura russa moderna, poeta, dramaturgo e prosador. Sua influência ultrapassou sua própria vida. Basta ler Eugene Onegin para perceber que foi ele quem deu aos russos sua língua literária viva.
Alexander Soljenítsin (1918–2008) — a voz ousada em tempos de medo. Escreveu Um Dia na Vida de Ivan Denisovich e, com coragem, denunciou os horrores dos campos soviéticos em O Arquipélago Gulag. Por isso, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.
Levantou levemente as sobrancelhas e acrescentou, como quem resume um século inteiro em uma única linha:
— Esses escritores não escreveram apenas para entreter, mas para nos perguntar: por que vivemos? Para quem? E como amamos, carregando este mundo sobre nossos ombros?
Muna sorriu suavemente e disse:
— Sabe? Talvez seja isso que mantém a literatura deles viva… porque ela nos questiona, não nos dá respostas.
Naquele anoitecer comum em Damasco — comum em aparência, mas especial naquilo que não se diz — algumas noites guardam entre suas dobras o que não se escreve, e registram o que não se conta.
Numan voltou do instituto, onde estudava desenho arquitetônico e geométrico, com passos pesados, como se o dia tivesse pendurado seus fardos nos calcanhares. O cheiro de papel e tinta ainda pairava em suas mãos, e a voz do professor ecoava em sua mente, repetindo instruções infinitas, tarefas que consumiam o tempo como lenha no fogão de inverno.
Sentou-se na sala; a casa mergulhada em uma quietude suave, quebrada apenas por uma luz amarela fraca, derramando-se de um velho abajur no canto, projetando sombras que pareciam memórias.
Deitou-se no sofá e pegou o romance que havia deixado na mesa pela manhã: Anna Kariênina. Abriu na página onde parara e passou os olhos pelas frases, não com a mente, mas com os olhos, como quem lê imagens penduradas na parede da memória, não linhas impressas no papel.
Nesse exato instante, Muna surgiu à porta da cozinha, enxugando as mãos na barra do avental. Parou ao vê-lo imerso nas páginas, disse nada, apenas se aproximou e sentou-se perto dele, como quem espera que ele termine uma frase… ou um suspiro.
Sussurrou, quase respirando junto com a voz da própria narrativa:
— Numan… você teria fugido de mim se eu fosse como Anna Kariênina?
Ergueu os olhos dela lentamente, como quem regressa de um mundo distante cujas sombras ainda o envolvem. A voz saiu-lhe baixa, mas carregada do peso da tinta e das visões que habitavam aquelas páginas:
— Abandonaram-na, Muná… Ela apenas não encontrou quem abraçasse o seu medo.
Ela aproximou-se mais um pouco e pousou o olhar na capa do livro entre as mãos dele, como se tentasse agarrar o fio invisível daquela mulher de papel:
— Mas ela fugiu… do filho, do marido, de tudo. Não achas que foi egoísta?
Numan respirou fundo, como quem rearruma os próprios pensamentos entre as costelas, e respondeu:
— Talvez… Mas a dor, às vezes, faz daquilo que parece egoísmo uma forma de sobrevivência. Ela procurava um calor que nunca conheceu, um olhar que a visse, uma voz que a chamasse sem a julgar.
Muná baixou a cabeça. O sussurro que lhe escapou misturou-se ao ritmo do seu coração, como se perguntasse ao mundo e não a ele:
— E nós, mulheres… só somos vistas quando nos rebelamos?
Nesse instante, o pai dela surgiu no corredor com passos leves, uma chávena de chá na mão. Parou à porta, observando sem interromper. Escutava com olhos que sabiam bem que aquela conversa não era apenas sobre um romance, mas sobre algo mais fundo.
Numan fitou Muná demoradamente, pousou o livro ao lado e disse com uma calma que soava sincera:
— Não… Penso que algumas sociedades preferem fechar os olhos até vocês gritarem. Só então vos veem — não como alguém que deseja ser amado, mas como uma ameaça.
O pai de Muná soltou um leve suspiro e sentou-se em silêncio à frente dos dois. Reparando no tremor subtil da voz da filha, perguntou:
— Tens medo de acabar como ela?
Muná assentiu com um murmúrio quase doloroso:
— Tenho… Não pelo facto de ela ter terminado debaixo do comboio, mas porque ninguém lhe segurou a mão antes de ela saltar.
Numan respondeu com um tom quente, que lhe acariciava o coração:
— Se fosses Anna, eu seria Lévin… aquele que fica. Não o Vronski, cansado do amor e da impotência.
Muná esboçou um sorriso onde cabia também um resquício de inquietação, como se lesse o final de um livro e temesse virar a última página. Disse:
— Então… lê-me como lês estas páginas. Mas não deixes o meu fim em aberto.
Numan estendeu a mão, pousou-a sobre a dela num silêncio prolongado. A sua voz, quando veio, era como chuva batendo no vidro:
— O amor não se escreve com um ponto final… Somos nós que decidimos se o deixamos suspenso, ou se traçamos a última linha.
Os três trocaram olhares silenciosos, mas o silêncio não era vazio. Era um instante cheio de tudo o que não se diz, como se a próxima frase não se escrevesse com tinta ou papel… mas com um olhar, uma respiração, um coração que sabe que a vida, como os grandes romances, não termina quando fechamos a página.
Capítulo Vinte e Seis 26:
Enquanto a brisa suave se infiltrava pela janela do quarto, e a luz da lua surgia pálida entre nuvens dispersas, perguntas silenciosas pairavam no ar, inquietas com a clareza de alguns detalhes. Numan retirou-se calmamente para o seu quarto, depois de se despedir de Muná com um leve sorriso.
Fechou a porta atrás de si, respirou fundo e sentiu uma espécie de paz invadir-lhe o peito. Sentou-se na beira da cama, deixando o corpo cansado relaxar, tentando esvaziar a mente daquelas ideias que giravam incessantes à sua volta, como um redemoinho que não se encerra.
Numan pensou consigo mesmo:
— Teriam aquelas palavras significado outra coisa?
Sorriu brevemente:
— Claro… é Muná. Nunca me deixa sem inundar-me com perguntas, como se a sua fala abrisse novos horizontes para olhar tudo de outra forma.
Fechou os olhos por um instante e voltou a recordar a conversa sobre os escritores russos. Aqueles nomes caíam em sua mente como gotas de chuva, e ele os recolhia um a um, mergulhando nas profundezas de cada pensamento. Lembrou-se das palavras de Tolstói sobre o bem e o mal, sobre o amor e a compreensão da natureza humana. Perguntou-se em silêncio:
— Será que todos eles buscavam a mesma resposta que eu procuro? Estaremos todos tentando decifrar o enigma da vida através do sabor da literatura?
As palavras de Muná vinham-lhe agora aos ouvidos, suaves e insistentes:
— Os escritores russos não escreveram apenas para entreter; lançaram perguntas sobre a existência, questões que nos pertencem a todos… Nós os lemos, e é nossa busca que continua.
Mas seria aquela convicção total? Ou apenas a idealização das personagens, das figuras literárias que, aos seus olhos, se tornaram mais que nomes?
Deitado na cama, a luz fraca do abajur ao lado projetava sombras dançantes na parede, como se estas vagueassem por pensamentos ainda não escritos. Cobriu-se lentamente e sentiu um fio de calma deslizar-lhe pelo coração, embora outras ideias não tardassem a regressar.
Numan pensou consigo mesmo:
— Estarei sempre nessa busca incessante?
Suspirou e continuou:
— Cheguei a um ponto em que o sonho é mais que ambição? É uma necessidade urgente, ser mais do que um jovem correndo atrás da vida… Quero compreender! Quero ser… algo diferente, algo melhor!
Olhou então para o teto, onde um quadro representava o pôr do sol sobre as paredes, como se imitasse marcos de uma longa jornada já percorrida. E perguntou, em silêncio:
— Será isso tudo o que sobra depois que a vida passa? Perguntas sem fim, e respostas que nunca se revelam claras?
Mas isso não o impediu de finalmente se entregar ao sono, enquanto o horizonte se desfazia lentamente em sua mente, deixando as luzes tênues da parede em um silêncio quase reverente.
No quarto de Muná, ela apagava a luz fraca ao lado da cama e se deitava sobre o travesseiro, depois de um dia longo. Seus pensamentos passeavam entre as palavras de Numan e os sussurros profundos que refletiam seus sentimentos em relação à conversa.
Recordou as expressões dele ao mencionar os escritores russos, aquelas palavras que haviam percorrido sua memória mais de uma vez. Mas o que mais a fascinava era o brilho nos olhos dele quando falava sobre suas filosofias.
Muná pensou consigo mesma:
— Será possível que esse jovem guarde tantas ideias em sua memória?
Sorriu timidamente:
— Talvez eu tenha subestimado… ele é mais do que uma pessoa ambiciosa… é alguém cheio de sonhos, fervilhando de pensamentos inesperados.
Lembrou-se do riso dele quando disse:
— Os escritores russos não escreveram apenas para entreter…
E a voz dele ecoava em seus ouvidos, repetindo aquelas palavras, como se ressoassem dentro de sua própria mente. Sentiu que a conversa sobre eles era uma espécie de fuga para um mundo mais amplo, distante da rotina diária, mas, ao mesmo tempo, parecia apontar para ele próprio.
Muná refletiu:
— Será que ele realmente busca a si mesmo na literatura, como diz? Ou está apenas tentando encontrar um motivo para viver?
Sorriu e fechou os olhos:
— Talvez… talvez a resposta de tudo esteja nessas letras, nesses livros…
E, finalmente, deixou-se levar pelo descanso que tanto esperava.
Assim a noite se desenrolou suavemente, cada um imerso em seus pensamentos, cada um buscando a si mesmo nos sonhos, explorando caminhos novos para escapar do turbilhão da vida, esperando um novo amanhecer que pudesse trazer respostas.
No quarto, Numan fechou os olhos e se entregou ao sono, mas não ao silêncio completo; um cenário estranho se abriu diante dele, como se estivesse em uma varanda alta, olhando para uma cidade encoberta pela névoa. Tudo ao redor estava cinza, e as pessoas se moviam em círculos cruzados, sem que ninguém olhasse para ninguém.
Em suas mãos, um livro aberto, mas as letras escorriam como água, desaparecendo e reaparecendo, espalhando-se novamente. Tentou ler, compreender, segurar uma frase, mas as páginas viravam sozinhas, rápido demais para os olhos, como se o tempo conspirasse contra o entendimento.
De repente, Muná apareceu entre a multidão, usando um lenço vermelho, olhando para ele de longe, sem se aproximar. Ele quis chamá-la, mas a voz o traiu; quis correr até ela, mas seus pés pareciam enraizados no chão pelo medo.
Enquanto lutava, ouviu uma voz suave atrás de si, dizendo:
— Nem todo aquele que lê, compreende… e nem todo aquele que compreende, sobrevive…
Ele se virou, mas não viu ninguém. Apenas um grande espelho ocupava o lugar de onde vinha a voz. Nela, seu reflexo se fragmentava em vários rostos, alguns familiares, outros completamente estranhos.
Estendeu a mão em direção ao espelho e, de repente, ele rachou, arrastando-o para um abismo sem fundo, onde ecoava uma frase antiga:
— Você está buscando a vida, ou fugindo dela?
Em outro quarto, o silêncio envolvia Muná. Ela fechou os olhos após um dia exaustivo, mas o sonho abriu uma nova porta. Viu-se caminhando por um corredor longo, ladeado por livros suspensos no ar, girando como planetas em suas órbitas.
Cada livro se abria sozinho, liberando imagens luminosas: Tolstói caminhando sozinho por um campo encharcado de silêncio; Dostoiévski conversando com um carcereiro em uma cela estreita; Tchékhov sorrindo para uma criança doente, com um sorriso tingido de melancolia.
No final do corredor, viu Numan sentado sob uma árvore majestosa, escrevendo em um pequeno caderno. Seu rosto parecia calmo, e os olhos brilhavam como se tivesse encontrado o que buscava. Ela se aproximou, prestes a perguntar o que ele escrevia, mas ele ergueu os olhos e disse suavemente:
— As respostas não estão apenas nas palavras… às vezes precisamos vivê-las.
E então ele desapareceu, como se nunca tivesse estado ali, deixando apenas o caderno aberto sobre a grama. Uma única frase escrita, com uma caligrafia que lembrava a dela:
— Talvez escrevemos para iluminar o caminho uns dos outros, e não para compreender tudo perfeitamente…
A noite se retirou suavemente sobre seus corpos cansados, enquanto suas almas continuavam a viajar pelo espaço dos sonhos, onde não havia fronteira entre significado e imaginação, entre literatura e confissão.
Cada um mergulhou em suas reflexões, em símbolos que dançavam entre letras e sombras, buscando a própria identidade no espelho do outro, esperando por um amanhecer que talvez um dia trouxesse respostas.
Entre a noite e o amanhecer, naquele instante frágil em que a consciência oscila entre o sono e a vigília, ambos compartilharam um mesmo sonho, como se suas almas tivessem se unido em um espaço sem tempo ou lugar, apenas a presença pura de duas sombras caminhando lado a lado.
Viram-se em um bosque estranho, com árvores de troncos nus e galhos altos, cujas folhas pendiam como segredos ainda não revelados. O ar era tão puro que confundia os sentidos, e a luz tênue lembrava a iluminação de uma prece ao amanhecer.
Caminharam em silêncio. Não havia necessidade de palavras: cada pensamento na mente de um pulsava no coração do outro.
Disse Muná, enquanto passavam sob um arco de jasmim:
— Parece que já estivemos aqui antes…
Numan respondeu sem se virar:
— Porque é o sonho que tecemos desde que nos conhecemos…
Sentaram-se sobre uma pedra branca que se projetava sobre um rio tranquilo, cujas águas transbordavam de livros abertos, cada qual com um título familiar, cada página contando uma parte de suas histórias.
Quando Muná estendeu a mão para um dos livros, encontrou nele linhas escritas pela mão de Numan:
“Eu procurava a mim mesmo, e te encontrei entre as linhas dos teus olhos…”
Ela sorriu, como se já soubesse o que ele diria, e respondeu com uma voz leve como a brisa:
— E eu corria atrás do sonho, até que ele se virou para mim e vestiu tua forma…
De repente, a cena mudou. Encontraram-se em um trem atravessando caminhos enevoados, onde o único passageiro visível era o outro. Sentaram-se frente a frente, mas o vidro atrás de Numan refletia apenas uma imagem deles, como se fossem dois rostos de um mesmo espelho, ou dois versos de um poema recitados por uma língua que não se fala, apenas se sente.
Numan perguntou, na delicada margem desse sonho:
— Acreditas que o sonho une os corpos como une as almas?
Ela respondeu sem hesitar:
— Talvez não… talvez o sonho não queira que os corpos se toquem, mas que se elevem, se encontrem em um ponto mais profundo que o abraço…
Em um instante fugaz, o céu tingiu-se com a cor do amanhecer, e a luz começou a se infiltrar lentamente, apagando as sombras do sonho, dissolvendo os contornos da cena como letras que derretem em um rio do esquecimento.
Numan abriu os olhos devagar. O quarto iluminava-se pouco a pouco. O primeiro pensamento que lhe veio à mente foi registrar o que viu, mas ele sorriu e simplesmente respirou fundo.
Ao mesmo tempo, Muná abriu os olhos, fitando o teto com firmeza, e colocou a mão sobre o peito, como se quisesse sentir que o sonho ainda pulsava ali.
Cada um se perguntou em silêncio:
— Isso foi um sonho? Ou nossas almas realmente se encontraram em outro lugar?
Não havia resposta. Mas algo quente percorria seus corações, como uma certeza suave que dizia:
— O que o sonho uniu, a dúvida não separa…
E assim receberam o amanhecer, não inteiramente despertos, nem inteiramente adormecidos, mas entre os dois estados, onde nasce um amor que não busca posse, apenas se contenta em ser presença luminosa, um sonho repetido na forma de dois corações harmonizados.
Quando o primeiro raio de sol entrou pelas janelas da casa comprida, o aroma do café perfumava a cozinha, trazendo consigo a promessa de um encontro diferente de todos os anteriores.
Numan sentou-se à mesa de madeira, com uma xícara de café fumegante à sua frente, como se o vapor escrevesse no ar tudo aquilo que ainda não havia sido dito.
Muná entrou com passos silenciosos, olhos ainda pesados de sono, mas com um brilho incomum que revelava que a noite não fora comum. Sentou-se à sua frente sem dizer uma palavra, limitando-se a um sorriso tímido, como o início de um poema que aguarda alguém para completá-lo.
Disse Muná enquanto passavam sob um arco de jasmim:
— É como se já tivéssemos estado aqui antes…
Numan respondeu, sem desviar o olhar da luz da manhã que escorria sobre a borda de sua xícara:
— Porque é o sonho que tecemos desde que nos conhecemos…
Sentaram-se sobre uma pedra branca à beira de um rio tranquilo, cujas águas transbordavam de livros abertos, cada um com um título familiar, cada página contando um pedaço de suas histórias.
Muná estendeu a mão a um dos livros e encontrou nele linhas escritas por Numan:
“Eu procurava a mim mesmo e te encontrei entre as linhas dos teus olhos…”
Ela sorriu, como se já soubesse o que ele diria, e respondeu com uma voz suave, como a brisa da manhã:
— E eu corria atrás do sonho, até que ele se virou para mim e vestiu tua forma…
Os olhos de Numan continuavam presos à luz da manhã. Ele disse:
— Vi-nos juntos… em um sonho que não se parece com os sonhos que passam sem deixar rastro. Estávamos em um lugar estranho, parecendo nós mesmos e ao mesmo tempo não… como se vivêssemos fora do tempo.
Muná deu um leve suspiro e colocou a mão sobre o peito, como se suas palavras tivessem tocado algo profundo dentro dela:
— Um bosque? Árvores que se curvam, escondendo algo? E um rio transbordando de livros?
Ele sorriu, maravilhado:
— Sim… exatamente. E eu estava escrevendo algo para você em um livro aberto… e você… leu!
Muná baixou o olhar por um instante, depois ergueu-o, e seus olhos brilhavam com algo que não se podia nomear. Sussurrou, como se revelasse um segredo:
— Eu também o vi, Numan… todos os detalhes. Eu estava lá, e você me dizia: o sonho não quer que os corpos se toquem, mas que se elevem…
Seguiu-se um silêncio longo entre eles, não pesado, mas que tornava o momento mais nítido, como se o tempo tivesse parado para ouvir o que não se diz.
Muná murmurou, girando a xícara de café entre as mãos:
— Será que duas almas podem se encontrar no sonho exatamente assim, sem combinar? Será que o sonho é uma mensagem que viaja secretamente entre dois corações?
Numan respondeu, com os olhos refletindo uma luz de contemplação profunda:
— Talvez o que vimos seja o mais próximo da verdade, porque nasceu de nós, e não do mundo exterior. Talvez precisemos do sonho para revelar o que tememos sussurrar na vigília…
Ele inclinou-se ligeiramente para ela, a voz baixa, alcançando apenas os seus ouvidos:
— No sonho, eu procurava a mim mesmo… e te encontrei.
Muná baixou os olhos, os lábios tremendo, como se temesse que a fala pudesse quebrar o encanto do que sentia.
Finalmente disse, com delicadeza:
— E eu… corria atrás da esperança, e te encontrei me esperando.
O café esfriava lentamente, mas o calor entre eles crescia, não havia mais necessidade da presença de ninguém, nem do pai dela, apenas o sonho que se estendia sobre a mesa, guardado pela luz, confirmado pelo silêncio do espaço.
Sentaram-se assim, compartilhando o sonho como se fosse uma memória comum, uma conversa que não precisava de explicação ou justificativa, apenas palavras que se entrelaçavam como galhos de jasmim, feitos para se encontrarem.
Naquela manhã, o café deixou de ser apenas uma bebida; tornou-se um ritual secreto que unia Muná e Numan, em um instante fora de tudo que conheciam, um momento que os olhos nunca haviam presenciado, mas que os corações reconheceram.
O silêncio permaneceu por mais alguns instantes, e cada palavra parecia derreter no ar, tocando algo misterioso nas almas, levada pela brisa suave que entrava pelas janelas abertas. Muná olhava para sua xícara, como se o líquido negro guardasse novos segredos. Ela se libertou dos pensamentos por um momento, levantou os olhos para Numan e disse, percebendo algo que nunca havia notado antes:
— Sabe, Numan… o que vi no seu sonho, o que senti naquele instante, parecia encarnar tudo que estávamos procurando o tempo todo. Como se tudo estivesse claro, mas escondido nas dobras da alma.
Numan sorriu suavemente e segurou sua xícara, observando o líquido dançar lentamente dentro do copo, como se expressasse pensamentos dispersos.
— Esse é o encanto do sonho, Muná… — disse ele — não oferece respostas diretas, mas se parece com fios entrelaçados, tentando revelar a imagem maior.
Após alguns instantes de silêncio carregado de intensidade, continuou:
— Não acredito que possamos compreender tudo de uma vez… Talvez apenas o sonho consiga conectar presente e futuro.
Muná fitou-o profundamente, como se buscasse algum segredo escondido em suas palavras. Lembrou-se de si mesma sentada em outro lugar, distante dali, ouvindo-o como quem escuta uma história estranha, já vivida mas esquecida.
— Você acha que estamos vivendo o sonho? Ou será que vivemos a realidade que nos é imposta? — perguntou, e as perguntas se aglomeravam em sua mente como um pequeno pássaro querendo voar.
Numan ergueu o olhar para ela, e um sorriso enigmático se desenhou em seus lábios, como se contemplasse um mundo mais amplo do que a cozinha que os cercava naquele instante:
— Às vezes, penso que vivemos mais o sonho do que a própria realidade. O sonho nos abre horizontes de possibilidades… enquanto a realidade nos limita ao que é determinado.
Muná desviou o olhar para a xícara, assentindo com a cabeça, reconhecendo em segredo uma verdade própria. Ela o questionava sobre algo mais profundo que o sonho, algo que dizia respeito a si mesma, mas que não ousava revelar em voz alta.
— Às vezes sinto que é o sonho que me dá o sentido que procuro. Não apenas na literatura, mas na própria vida — disse, com voz suave, como se temesse esvaziar o coração.
Os olhares se encontraram, e os pensamentos fluíam entre eles como letras invisíveis, formando-se no ar. Ambos sentiam a luz nova que começava a penetrar em seus corações, como se algo estivesse crescendo dentro deles. Algo que se parecia com um sonho, ou talvez mais que um sonho, oscilando entre vigília e imaginação.
— E se o sonho for justamente o que mais precisamos? — disse Muná, lançando um olhar àquele céu azul que começava a se expandir lá fora.
— Talvez… mas a verdade esteja em viver entre os dois, entre o sonho e a vigília — respondeu Numan, em tom calmo, como se também falasse para si mesmo.
Naquele momento, tudo ao redor parecia imóvel, silencioso, mas pensamentos e emoções dançavam entre eles, como se ainda não tivessem se completado. Não havia conversa sobre o futuro ou o destino; havia apenas aquele vínculo sutil entre suas almas, tornando a cena quase eterna.
O sol despontava no céu, preenchendo o ambiente com uma sensação de espera, como se aquela manhã fosse o início de algo que não se podia descrever em palavras. Mas os corações sabiam, no fundo, que algo havia mudado entre eles, e que aquilo era apenas o começo.
A luz que invadia a cozinha dançava suavemente sobre seus rostos, flertando com as sombras de seus pensamentos e sonhos entrelaçados. Tudo ao redor respirava calma, mas em seus corações havia um murmúrio secreto, um desejo de algo desconhecido, uma força que os puxava um para o outro, como se percorressem o mesmo caminho sem ainda saberem aonde ele os levaria.
— Numan, você acha que… podemos viver o sonho como queremos? — sussurrou Muná, aproximando-se um pouco da mesa, contemplando as bordas brancas de sua xícara, como se buscasse a resposta no silêncio do tempo e do espaço.
Numan pausou por um instante, deixando a xícara de café sobre a mesa. Olhou para Muná com olhos repletos de perguntas não feitas, e falou devagar, como quem pesa cada palavra:
— Acredito que vivemos o sonho em muitos momentos, Muná. Mas às vezes o perdemos quando paramos de buscá-lo.
Muná observou-o atentamente, percebendo nesse olhar uma parte de um sonho distante. Sorriu suavemente e disse:
— Você está certo. Às vezes tentamos viver o sonho como se fosse algo externo, algo que precisamos alcançar… quando, na verdade, ele está dentro de nós, escondido em nossos corações.
Numan silenciou por um momento, percebendo que ela não o questionava apenas sobre o sonho como a mente racional imagina, mas sobre a verdade que se entrelaça com esse sonho. A verdade que talvez não seja visível no mundo exterior, mas que se desenha nas paredes da alma.
— Sim… — murmurou, aproximando-se dela lentamente, diminuindo a distância entre eles. — Talvez estejamos buscando aquele instante em que os sonhos encontram a realidade. Nesse instante, tudo se torna possível. Tudo.
Muná observava suas palavras caírem suavemente, iluminando um caminho ainda não trilhado. Respondeu com uma voz doce, mergulhada na profundidade dos sentimentos que guardava em seu coração:
— Não sei se o momento verdadeiro que buscamos existe na realidade, ou se é apenas um sonho contínuo dentro de nós.
Numan respirou fundo e fixou o olhar nos dela, vendo algo que ia além das palavras. Sabia que aqueles momentos compartilhados não eram meras palavras ditas, mas transformações profundas em seu mundo interior.
— Será que podemos estar juntos nesse sonho, Muná? — perguntou em voz baixa, como se falasse primeiro consigo mesmo antes de falar com ela.
Um sentimento estranho percorreu o coração de Muná, uma sensação que o tempo guardava entre as dobras de seus momentos. Perguntou-se internamente: “Será que esse sonho que Numan vive me inclui de fato? Sou parte desse sonho?”
Antes que encontrasse uma resposta, antes que as palavras pudessem se libertar, sorriu e ergueu a cabeça para o céu, agora tingido pelas cores suaves do amanhecer, e disse:
— Sim… talvez vivamos o sonho juntos, mas também precisamos buscá-lo juntos.
Essa declaração soou como um anúncio silencioso de um recomeço, o início de uma experiência que poderia transformar tudo entre eles. E aquele instante era apenas a primeira de muitas cenas que compartilhariam, momentos preenchidos de perguntas, sonhos e sentimentos que as palavras sozinhas não conseguem abarcar.
Naquele instante, a vida parecia escrever um novo capítulo na história de Muná e Numan, um capítulo capaz de unir sonho e realidade, letras e esperança, almas que se encontram na intensidade de um entendimento profundo.
Numa manhã tranquila, os primeiros raios de sol se espalhavam pelos corredores da faculdade. Muná e Numan caminhavam para a aula de literatura andaluza, cada um tentando se posicionar em um horizonte renovado, onde o legado do passado dialogava com o presente, e a poesia da Andaluzia funcionava como um espelho da alma.
Após a aula, escolheram um canto discreto no pequeno café da faculdade, imerso em silêncio e contemplação. Chegaram-lhes xícaras de café fumegante, mas seus olhares permaneciam longe do aroma e do vapor, pois carregavam em si um desejo ardente de falar sobre aquele legado que haviam acabado de ouvir, sobre a aula que fora como um passeio intelectual entre passado e presente.
O ar parecia impregnado com o perfume dos livros, iluminando o céu das mentes, e o silêncio do espaço não diminuía a grandiosidade daqueles instantes vividos, momentos que lembravam uma excursão pelo tempo da cultura.
Muná, sempre inclinada a contemplar os significados profundos da poesia, olhou para a xícara e disse, em voz baixa, mas carregada de melancolia:
— Você acredita, Numan, que a poesia andaluza não era apenas um jogo de palavras ou ornamento linguístico? Era um grito das profundezas da terra. Uma poesia que nos conta a história de uma civilização perdida, mas cuja alma permanece viva dentro de nós, ensinando uma sabedoria que atravessa séculos.
Numan sorriu suavemente e respondeu:
— Tens razão. Mas a poesia andaluza, além de refletir a civilização, espelhava os corações das pessoas. Expressava sua saudade, seu anseio pelo tempo que passou, e eram esses sentimentos que alimentavam a essência das suas obras.
Inspirou profundamente, como se sentisse o peso das palavras antes de pronunciá-las, e recitou para Muná versos de Ibn Zaydun, com uma ponta de nostalgia na voz:
“O afastamento tornou-se substituto da aproximação,
E pela falta do encontro, sofremos a distância,
E eu não era mais do que aquele que ainda vive na esperança,
E no coração, após a separação, revivo.”
Muná fechou os olhos por um instante, sentindo a profundidade dos versos. Era como se aquele sentimento estivesse refletido em seu próprio coração, ecoando com o de Numan. A amargura da saudade pairava no ar, quase misturando-se ao sabor do café, que permanecia na xícara. Mas a doçura desse anseio, impregnada de memória e emoção, era mais rica do que qualquer gosto que pudesse sentir.
Então Muná respondeu, buscando aprofundar a compreensão daqueles versos:
— Neles se encarna ao mesmo tempo a esperança e a dor, e é nesse equilíbrio que reside a força das palavras. O poeta contempla a separação, mas permanece preso à esperança; sob esse teto de saudade, a luz não se apaga, e o tempo não consegue apagar o seu efeito.
Ela continuou, recordando algo que já havia lido sobre os poetas andaluzes:
— Mas vejo que a poesia andaluza não expressa apenas tristeza; ela também abre espaços para o otimismo. Os poetas celebravam a beleza da natureza, os instantes cotidianos que passam rápido. Como Ibn Khafaja, que descreveu a Andaluzia com uma beleza singular, quando escreveu:
“Por teu amor, as adormecidas não me ultrapassaram
Senão na minha alma, ó Deus, são minhas bênçãos.”
Numan sorriu levemente, absorvendo cada palavra, e permaneceu em silêncio por um instante antes de acrescentar:
— Sim, essa poesia exala o espírito da Andaluzia, um espírito que sorria apesar da dor, que chorava, mas jamais esquecia a beleza. Lembra-me de Ibn Zaydun, quando descrevia seu amor por Wallada bint al-Mustakfi, tocando naquela profunda sede de esperança mesmo diante da separação.
Em seguida, leu com voz suave alguns versos famosos:
“Ó aquele cujos olhos são prisioneiros do coração
Meu coração é teu, mesmo quando se afasta e se acalma
Ó quem sobre teus lábios se encontra ansioso
Esperando a união, e encantado pelas esperanças”
Muná então acrescentou, com olhos brilhantes, acompanhando o fio da conversa:
— Quanto à prosa, li Tawq al-Hamama de Ibn Hazm, um livro que considero referência para compreender o amor e as relações humanas.
Numan, curioso, perguntou:
— E tu, como vês esse livro?
Ela sorriu e respondeu:
— É uma das obras mais refinadas sobre o amor árabe. Não trata apenas do amor cortês, mas aborda todas as dimensões das relações humanas, distingue o amor puro do desejo, e narra histórias reais da Andaluzia, tornando-o mais próximo da realidade do que qualquer concepção poética.
Numan exclamou admirado:
— Lembro-me de que este livro é considerado referência mundial na literatura sobre o amor, e, de certa forma, lembra a arte do amor de Ovídio, na forma como lida com dores e esperanças dos amantes.
Aqueles momentos entre Numan e Muná tornaram-se inesquecíveis, uma mistura do antigo espírito andaluz com o presente, onde suas almas se encontravam em uma imagem literária que transcendia palavras, assim como um rio que ultrapassa suas margens para desaguar em um mar mais amplo.
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